sábado, 31 de janeiro de 2009

Casa e Familia (Final)

12
Já passava da meia noite, ela sabia por causa da posição da lua no céu quando Aku partira, não se virou, ficou ali parada como se esperasse algo acontecer para saber se tinha vontade de fazer uma coisa ou outra. Ele a convencera a tentar algo diferente, argumento que eles humanos eram tão idiotas, não era preciso sair por aí matando, era só engolir o mal de dentro deles. Foi assim que Louhi soube que podia ajudar Tapio, foi assim que soube que Aku podia ajudá-la. Nunca seria humana, mas estaria bem menos longe disso. Aku por algum motivo, não parecia bom nem mau, apenas... Aku.
-Não é a primeira vez que você me faz sentir um inútil... – Tapio murmurou paralisado, não sabia se estava feliz ou simplesmente deprimido em visão de sua inaptidão. – Mas você e Aku foram dois golpes seguidos.
-Eu já falei Tapio, você não é fraco... – ela não se virou para ele.
-Só não sou um monstro. – ele riu de si mesmo – Por que você nunca me contou?
-Eu contei, você só não entendeu. – uma brisa suave batia pela floresta, aparentemente ninguém lembrava de Ukko, não fazia sentido, não podiam fazer mais nada pelo velho mestre. – Seu trabalho é me matar. Lembra?
-Não vai acontecer. – ele falou colocando as mãos no bolso. – Estava pensando em me aposentar...
-Tão cedo? O que vai fazer...? – ele queria que ela virasse, mas ela continuava olhando para onde Aku tinha partido.
-Me redimir... – ele falou sorrindo dando um passo a frente. – Se eu conseguir... Louhi...
-Se redimir do que?
-Olhe pra mim...
-Eu não quero.
-Por favor...
-Não...
Ele preferia que ela virasse, mas o como não importava desde que pudesse olhar para ela, a girou pelos ombros a fazendo ficar de frente para ele. Era a primeira vez que via o rosto dela tão triste, os olhos cinzas como pedras frias e os lábios semi abertos numa respiração fraca, ainda vermelhos de sangue. Ela olhou para o chão, não podia mover os olhos dela como fizera com o corpo, mas tinha que fazê-la olhar em seus olhos. Puxou-a um pouco mais perto, sentindo a pele dela fria sob suas mãos.
-Eu queria tentar me redimir... Eu queria olhar pra você do mesmo jeito que olhei pela primeira vez que te vi...
-A primeira vez que você me viu você virou o rosto e continuou seguindo a Lahja.
-Não. Aquela foi a segunda. – Tapio admitiu sorrindo. – Louhi, eu quero que você olhe nos meus olhos e veja o que eu vi daquela vez...
-Uma coisa?
-Não.
-Animal?
-Não! Louhi...- ela a chacoalhou de leve. – Eu...
-Eu não sou o que você achava que eu era, Tapio. Não importa o que você viu da primeira vez...
-Importa o que eu vejo agora... – ele falou a puxando e a abraçando – Louhi... Você...
-Não sou humana, eu sei que eu pareço agora... Mas não sou. – ela o empurrou. – Não se iluda...
-Eu não estou me iludindo. – ele falou a segurando antes que saísse andando sozinha pela milésima vez. – Eu sei que você não é humana... E eu sei que por anos tudo que eu pude pensar era que devia matar todo demônios que existisse... Mas eu não sou o garotinho que você viu pela primeira vez também, Louhi.
-Me solta...
-Eu não vou deixar você ir se esconder de novo... Cada ano, você mudava, mas eu também... Aquela raposa em Sirpa, Emma e o mordomo dela... Você. Não importa o que vocês são eu não os mataria. – Tapio engoliu em seco – Confia em mim.
-Não nos mataria porque você não ia conseguir, fracote... – ela deu risada, ele sentiu como se o peso de toda floresta tivesse sumido. – Por que você não desiste de mim?
-Eu sou seu guardião. E é isso que eu sempre vou ser, Louhi. – ele falou sorrindo.
-Claro...
Ambos saíram andando, como sempre andavam, um alguns passos de distância do outro, mas por algum motivo pareciam mais próximos. Os passos combinavam e olhavam na mesma direção enquanto caminhavam, na direção do que por muito tempo foi a casa deles. Um lugar pequeno no meio do nada, para evitar perguntas e curiosos, pequeno o bastante para não se afastarem um do outro. Controle, tudo que Ukko ensinou para ela, a entrega de Aku, tudo fora pensando naquele dia. Controlar a si mesma e não deixar nada a controlar.
-Louhi, Aku....
-É um vampiro. – ela respondeu antes de vir a pergunta – Ukko o prendeu quando era jovem e o usou de arma desde então...
-Eu notei, mas...
-O que?
-Qual exatamente é a ligação entre vocês?
-O que?! – ela deu risada.
-Eu ouvi vocês... Você não está apaixonada por ele, está?
-Não. – ela respondeu simplesmente encolhendo os ombros.
-Você respondeu muito rápido...
-Qual o problema?
-Eu tenho que cuidar de você! Um vampiro não é uma companhia saudável! – e realmente, não era.
-Você se preocupa demais...
-Não, você que se preocupa de menos.
-Tapio. – Louhi chamou parando de andar. – Não se preocupe, eu não tenho nenhum interesse em vampiros.
-Está bem...
-Eles são muito gelados. – Louhi falou continuando a andar – Talvez um lobisomen ou algo assim.
-O que?! Você está brincando né? – Tapio saiu correndo atrás dela que começou a gargalhar – Isso não tem graça, Louhi...
-Você não devia parar de se preocupar com essas coisas e me ajudar a achar o que sobrou do mestre, Ukko? Se é que sobrou alguma coisa... – ela comentou olhando para os lados.
-Louhi...
-O que?
-Não é nada, vamos pra casa. – ele falou sorrindo.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Liberdade

11
-Louhi!
O grito de Tapio nem foi ouvido enquanto ele vinha sangue jorrar depois do último esforço de Esteri. O gelo começou a se partir e desmoronar, ele sentiu que tudo que ele conhecia caía junto, como um castelo de cartas diante do sopro da respiração de quem assiste. Por que os olhos dela estavam tão distantes do olhar que ele conhecia? Assistiu Louhi pairar no céu, com asas que não batiam, flutuando com os olhos brilhantes fixos no gelo e na dama que desmoronava junto com ele, era como assistir sua própria humanidade desmoronar. Quando seus pés tocaram a pilha de escombros congelados, ela já não sentia frio.
-Me deixa ver seu ferimento... – Tapio pediu se aproximando mas foi parado pela ponta afiada da asa dela que parou em seu pescoço.
-Não precisa. – quando a asas de metal se moveu ele viu que o ferimento já estava fechado.
-Você está bem? – Tapio perguntou deixando as mãos caírem ao lado do corpo, estava perdido e não sabia o que fazer.
-Que tipo de pergunta é essa, Guardião? – a voz de Eemeli sôou atrás deles, Louhi nem se moveu. – Esteri... Fique em paz, minha menina. E quanto a você Tapio, que tal fazer seu trabalho?
-Mestre Ukko...
-Morto. – Louhi e Eemeli falaram ao mesmo tempo.
Tapio sentiu um desconforto crescente dentro de si, Ukko que matara centenas de demônios, Ukko que mesmo tão velho ainda era mais forte que vários juntos, tinha sido morto. Eemeli tinha trapos e espinhos de sombras do lugar de braços, suas mãos era um espetáculo grotesco e crescente que se alastrava como câncer ao seu redor. Sentia naúseas, o único ferimento no antigo mestre era um hematoma leve em sua face esquerda, Tapio estava acostumado a ver monstros e estar cercados por eles, mas naquele instante entre Louhi e Eemeli, foi a primeira vez que ele teve medo.
-Então, Tapio, você vai matar Louhi ou não?
-Por que eu faria isso? – Tapio perguntou erguendo os punhos.
-Está mais do que claro que ela já não têm nada de humano, se é que um dia teve. É trabalho do Guardião, matá-la... Faça seu trabalho. – Eemeli sugeriu sorrindo. – Não concorda, Louhi?
-Claro... – ela murmurou virando apenas o rosto, deu um sorriso pontiagudo – Assim que eu matar você...
-Louhi...
-Como pretende fazer isso, gata de rua? – ele perguntou dando um passo à frente.
-Ainda não decidi.
-CHEGA! – Tapio gritou criando uma jaula ao redor de Eemeli – Parem de me ignorar e brincar comigo!
-Talvez se você não fosse tão fraco, Guardião. – Eemeli falou atravessando a jaula como um fantasma. – Saía do caminho.
Um tapa, um único tapa foi suficiente para Tapio receber cortes por todo corpo e cair metros mais tarde, só preservava uma parte de sua consciência quando tocou o chão, sentindo a dor se alastrar. O que quer que fosse que estava no braço de Eemeli agora estava nele também, teve que selar a si próprio, mas por mais que a marca luminosa tivesse se tornado parte do seu corpo, ainda doía. Lembrou do primeiro selo de Louhi, o troll, mesmo depois de selado ela se debatia e socava as coisas, como se tivesse algo errado. Imaginava que devia ser daquele jeito, doloroso.
-Eu nunca entendi como o maior assasino de demônios de todos os tempos a deixou sob suas asas. O que Ukko viu em você? – Eemeli perguntou analisando as marcas no corpo de Louhi, suas asas de metal, a manopla a correntada ao seu braço. – Vejo que ele deu Aku à você...
-Controle... – Louhi falou sorrindo olhando para o chão.
-O que?
-Ukko disse que era a única coisa que eu tinha que aprender. – ela falou erguendo o rosto, os dentes pontiagudos à mostra. – Aparentemente sou melhor nisso que você.
-Do que está falando?
-Em breve... – a voz dela parecia a de Aku – Você vai perceber em breve, mestre.
Não que a troca de socos e saltos para desviar de chutes não fosse interessante, mas parecia mais um cumprimento banal até que finalmente Eemeli lançou suas sombras e espinhos para espremer Louhi. Não era o primeiro a tentar prendê-la e matá-la, mas não seria o último. Não foi dificil sentir no meio das sombras e espinhos presos a sua pele a rasgando junto com sua roupa, as correntes tilintando enquanto deslizavam. A mínima presença de Aku a fazia arrepiar, podia sentir qualquer coisa vinda dele mesmo de longe, ficou parada, assistindo Eemeli a cobrir de sombras e espinhos.
-Só isso? – Eemeli perguntou – O velho Ukko deu mais trabalho...
-A julgar pelos seus movimentos, já deve ter chego ao pescoço... – ela murmurou enquanto olhava o céu entre as árvores.
-O que?
-Você está morto mesmo, mestre, só não sabe ainda. – ela falou muito tranquilamente, parecia didática. – Por isso eu sou melhor que você, até Ensio era... Mesmo depois que o selo se partiu ele conservou o corpo e uma parte das faculdades mentais.
-Acha que eu perdi minha mente? – Eemeli perguntou dando risada. – Muito engraçado.
-Ainda não... Mas seus braços, pernas e torso já foram devorados. Não vai demorar pra essa coisa subir pra sua cabeça. – ela afirmou séria – E então você, não vai mais existir.
-Eu vou mudar, só isso... – ele afirmou, ouviu o tilintar e acabou levando um susto, notou que a corrente havia se enroscado em seu braço. – Aku?
-Se fosse realmente você teria sentindo a corrente se enroscando... – Louhi comentou o vendo preso como ela dos pés até o pescoço. – Aku é bem gelado...
-Isso não vai me machucar. Você por outro lado... – ele comentou sorrindo.
-É, essa coisa dói... Espinhos e sombras, parece uma erva daninha dos infernos. Mestre, por que você não ajudou Esteri? – Louhi perguntou o encarando.
-Você me viu?
-Antes dela morrer, antes de me golpear, eu vi você entre as árvores atrás dela. Por que não a ajudou? – Louhi perguntou novamente.
-Ela fez a parte dela...
-Obrigada mestre. – aquilo era um sorriso?
-Você enlouqueceu? – Eemeli perguntou vendo o rosto dela se contorcer, em breve poderia parti-la em mil pedaços, ela não ia aguentar muito mais.
-Muito obrigada. Eu precisava saber que era mais humana que alguém... – Louhi murmurou.
-Agora? – Aku perguntou.
-Tudo que resta de você é a cabeça, mestre. O resto é só sombras e capim... – Louhi afirmou com um brilho estranho nos olhos. – Agora, nem isso...
As correntes se estreitaram puxando Eemeli para perto, assim que ele se aproximou as asas que Louhi se fecharam cortando o pescoço dele, a cabeça rolou por algum tempo, o corpo apenas se dissolveu, deixando a mostra uma Louhi cheia de cortes profundos e vestindo trapos. Aku se encolheu de volta para o braço de sua mestra, na forma de uma pistola. O braço doía, mas conseguiu mirar um último tiro para estourar a cabeça de Eemeli antes que ela voltasse a vida de algum jeito, sentiu os dedos finos e gélidos em seu rosto.
-Você devia tê-lo matado logo, mestra...
-Não.
-Não?
-Se ele não me machucasse, o Tapio não ia conseguir... – ela tossiu sangue.
-Não me diga que está pensando em deixar ele a matar?
-Não se preocupe, eu não vou levar você pro inferno comigo. – Louhi falou se levantando com dificuldade.
-Estou certo disso. – Aku murmurou, será que estava sorrindo? – Mas ainda assim a prefiro viva...
-Eu não sou seu tipo lembra? Você gosta de humanas seu parasita... – Louhi fez uma careta ao sentir a corrente se enroscar em seu braço e apertá-lo – Para com isso.
-É tão repulsiva assim a idéia de não ser humana? – Aku perguntou, ela podia vê-lo na sua frente, a empurrando contra uma árvore, os olhos vermelhos a encarando. – Você despreza sua espécie tanto assim?
-Por que você se importa? Eventualmente vai achar outra pessoa pra sugar...
-Vou... É verdade. – ele falou ajeitando os cabelos dela atrás da orelha, seus olhos deslizaram pelas pontas das asas dela, seus dedos correram por seu braço até chegar na marca da cintura. – Mas até lá, você é minha mestra...
-Um bom mascote... – ela murmurou fechando os olhos.
-Exato... Abra a boca. – ele mandou.
Ela sabia o que era pelo cheiro, mas se recusou a confirmar com os olhos o que escorria por seus lábios, sentiu o corpo leve deslizando até o chão. Podia sentir Aku a envolvendo, correntes enroscadas juntando os rasgos de suas roupas, a saia estava quase inteira, apenas um corte na coxa direita que era até útil. Quando abriu os olhos de novo tudo que podia enxergar era Tapio encolhido no chão com um selo no peito, via marcas de cortes horizontais atravessando o corpo dele. Ficou observando o jovem respirar com dificuldade por algum tempo, lembrava do garoto sorridente que sempre tentanva se aproximar.
-Não se preocupe, a dor vai passar... – ela falou sorrindo enquanto se aproximava agachada.
-Louhi... – ele parecia não enxegar direito, apertava os olhos.
-Não é trabalho de um sacerdote engolir um demônio. – aquele não era o rosto de Louhi, nem suas mãos, nem sua voz, não era nada do que ele lembrava de toda sua vida. Eemeli estava certo, já não havia nenhum traço de humanidade nela.
-Não...
-Último... – ela prometeu baixando o rosto até a altura do selo.
Tapio sentiu os lábios dela como água fria, ou então metal contra sua pele, então sentiu algo o envolver e empurrar. Sabia o que ela estava fazendo, mas não conseguia sequer mover-se para longe dela, o selo aos poucos se apagou de seu peito, não sabia como, mas foi o que aconteceu, finalmente ela se levantou e ele sabia que aquela coisa estava dentro dela agora, em algum lugar daquele corpo que um dia fora de Louhi e agora era daquela criatura, estava o que corrompeu mestre Eemeli. Ergueu a mão na direção dela como quem tenciona criar um selo.
-Não... – ela murmurou com um sorriso.
-Mas...
-Seu trabalho não é me ajudar, Guardião. – ela sorriu, ele sabia que aquilo era um sorriso, mesmo quando as correntes se alastraram por todo corpo dela, ele sabia que ela estava sorrindo, as correntes brilhavam com todos os selos que ele conhecia, outros que nunca vira.
-Aku?
-Eu falei que ela não precisava de você... – a voz saía da corrente.
As asas de metal ficaram negras, sombras se espalhavam e começavam a dissolvê-las a fazendo cair aos pedaços, pedaços que se dissolviam na luz dos selos. Depois caminharam pelas costas, engolindo as marcas da cintura, escorrendo pelas pernas, subindo pelos braços até envolver o pescoço. Sombras engoliam e depois era engolida pela luz, assistiu-a chegar ao pescoço, os olhos brilharam cinzas, um sorriso afiado que ele conhecia bem. Sua voz quase não saiu a tempo daqueles olhos o reconhecerem.
-Louhi, não... – as sombras envolveram todo rosto dela, depois se iluminaram, as correntes caíram com um barulho que um condenado devia fazer ao morrer, os olhos dela se fecharam. – Não! Louhi...
Mas ela não respondeu, nem quando ele aparou sua queda para o chão. Apesar de não haver mais nenhum ferimento, nenhuma marca, nenhuma corrente apertando seu corpo, ela estava fria e pálida, imóvel. Era o mesmo rosto exausto de quando terminava um trabalho e se jogava na cama, como se não houvesse mais nada pra fazer. Ele não podia sentir seu coração batendo, nem a respiração parecia sair de seus lábios semi abertos. Ele realmente não podia matar ela, mas aparentemente ele dera o modo perfeito dela mesma se matar. Odiou a si mesmo, então odiou Aku.
-Você devia cuidar dela... Não era pra isso acontecer... Mesmo que...
-Mesmo que ela fosse um monstro? Tocante. – ele levantou o rosto a tempo de ver Aku, ainda tinha as correntes, mas nunca pareceu tão livre. – Era só uma questão de tempo até eu quebrar o selo...
-Então é isso? Você só protege ela até estar livre seu...
-Não diga mais nada. – Aku falou se aproximando. – Você é que a enxergou como um monstro, sequer a reconheceu como a garota que você tanto adorava quando ela chegou. Sabe qual foi a última coisa que ela viu nos seus olhos? Eu posso mostrar se quiser... Foi isso... – Aku ergueu um pequeno espelho.
-É minha culpa... – Tapio admitiu, olhando no espelho notou a expressão que tinha quando olhava para Aku, olhos frios e odiosos num rosto que sempre fora gentil. – O que aconteceu?
-Oito demônios, uma refeição bem balanceada se me perguntar. Não é meu prato favorito, mas era o que eu precisava pra quebrar o selo... – Aku falou fazendo carinho no rosto de Louhi.
-Você a matou pra se soltar...
-Não. – Aku negou.
-Ela tinha sete selos, mais ela são oito... Oito monstros. – Tapio contou.
-É, mas um não estava selado... O que ela arrancou de você... – Aku apontou para onde antes havia um selo em Tapio – Você devia agradecer, ela sabia o quanto você odeia monstros então o impediu de ser um. E ainda por cima fez seu trabalho por você... Acabou com os monstros.
-Menos um... – Tapio falou esmurrando, mas Aku segurou sua mão.
-Você está vendo, mas não está entendendo a situação. Seu mestre não ensinou nada a você, guardião? – Aku perguntou empurrando o braço de Tapio de volta. – Você deve compreender a situação, não simplesmente olhá-la...
Aku puxou Louhi dos braços de Tapio, era como uma boneca de porcelana, parecia tão frágil, apesar de não haver mais dano a se causar. Tapio no começo só sentiu raiva, mas aos poucos notou algo que não notara antes, todos os selos sumiram, se Aku engolira os sete demônios e o que estava em Tapio e fora arrancado, mas não Louhi. Então ela... Viu o movimento leve da respiração, por algum motivo o irritava Aku parecer tão delicado e gentil ao segurá-la, contemplando o rosto pálido.
-Nunca tive uma mestra tão teimosa... – ele falou mordendo a própria boca. – Nunca...
-Não pense nisso. – Tapio mandou se levantando num salto.
-A quer morta de verdade, então? – Aku perguntou de maneira aparentemente enraivecida, ou estaria se divertindo com a situação. – A prefere humana morta, do que viva e... Outra coisa?
-Eu a quero como era e não como você é... – Tapio respondeu.
-Não se preocupe com isso, ela já é um monstro, não pode ser dois ao mesmo tempo...
Mas não era só isso, Tapio sentiu a raiva lhe subir a cabeça quando viu Aku deixar o sangue de seus lábios escorrer para dentro dos dela, aos poucos a cor voltava a sua face, como um passe de mágica. Lentamente ele soltou as pernas dela que agora sustentavam a si mesma, era como assistir uma flor erguer-se para o sol e abrir-se, mas não havia flor nem sol. Apenas Louhi abrindo os olhos cinzas lentamente na escuridão ao mesmo tempo que Aku sorria e lambia os lábios.
-Eu adoro quando você está frágil, quase parece...
-Outra coisa... – Louhi murmurou sentindo Aku lhe dar um beijo rápido no rosto, o frio passou, mas ainda se sentia fora de si.
-Não vá se apaixonar por mim. – Aku falou sorrindo.
-Igualmente. Cala a boca e saí daqui antes que eu mude de idéia sobre te deixar livre.
-Como quiser, mestra. – Aku falou sorrindo se afastando sem deixar de olhá-la sequer um segundo – Obrigado pelo jantar...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Estrela

10
-Caçadores de demônios... Ukko, você está... – parecia procurar um adjetivo para escorrer por sua lingua como veneno – Velho. E você parece o mesmo menino de sempre, Tapio, correndo atrás de coisas que não existem.
-Eemeli, você está monstruoso. – Ukko murmurou de volta.
-Mestre Eemeli? – Tapio perguntou embasbacado, ele deveria estar morto há anos.
-Infelizmente para vocês a terra ainda não me engoliu. – Eemeli passou a lingua pelos lábios como quem saboreia o gosto das próprias palavras – Sabe, Ukko, sempre pensamos que se perdessemos o controle seriamos apenas mais um demônio. Mas é tão mais que isso...
-Mais um demônio? Não. – Ukko falou dando um passo a frente. – Uma abominação da natureza.
-E isso faz de você o que, velho amigo? Um projeto de abominação?
-Tapio, vá atrás de Louhi. Ela vai precisar de você
-Mestre...
-É melhor ouvir ele, Tapio. Antes que você perca a chance de dizer adeus a pequena Louhi. Como vai aquele animal selvagem, Ukko? Espero que você não tenha esperado demais dela, ela poderia não aguentar.
Tapio saiu correndo no momento em que Eemile virou o rosto para Ukko, mas pegou aquelas palavras no ar, animal selvagem. Como ele fora o único a não perceber que ela não era humana? Louhi devia se sentir só, esmagada entre grupos diferentes, sem fazer parte de nenhum, que imagem ela enxergava toda vez diante do espelho? Será que se via como ele via Eemeli? Um homem de cabelos já brancos, mas cujo rosto permaneceu jovem, marcas negras subindo pelo pescoço, dentes proeminentes, olhos curvos e brilhantes. Sombras se espalhando pelos braços, escapando pela manga comprida do casaco escuro, sombras que tomavam formas que andavam entre trapos e espinhos. Como será que ela achava que ele a via?
-Eemeli. Então você agora é um interventor para o outro time? – Ukko perguntou deixando as marcas de selos em seu corpo aparecerem, marcas que lembravam correntes.
-Não, Ukko. Eu estou formando meu próprio time e desde que nossos antigos alunos concordem eles terão uma longa vida ao meu lado, exceto os sacerdotes... Eles seriam um incômodo. E a pequena Louhi também.
-Você não passa de um erro, agora, Eemeli. Tentar matar Louhi, seria outro...
-Como eu poderia confiar em alguém que não é humana nem monstro?
-Pergunte isso olhando pro espelho, talvez descubra a resposta. – Ukko sugeriu.
-Você sempre foi o grande Ukko, o Exterminador. Eu me reservo o prazer de exterminar você... – Eemeli estendeu a mão, sombras, trapos e espinhos, na escuridão nada parecia com nada. – Pode ser fácil ou díficil.
-Você sempre teve um fraco pelos trabalhos fáceis. Atacando um velho assim...
Tapio não sabia o que estava acontecendo enquanto corria, mas ouviu claramente um grito que só podia ser de Ukko prestes a matar alguma coisa, antes que percebesse estava cercado por criaturas que se escondiam nas sombras, só teve tempo de se jogar no chão. Se aquele tipo de armadilha barata, de seres inferiores fosse o ferir, então era tão bom quanto nada. Batendo as mãos contra o solo fez brilhar um selo e lanças de luz saíram de suas costas como um porco espinho perfurando as sombras que se dissolveram. Não podia perder tempo, tinha que achar Louhi. Quem Eemeli teria enviado para matá-la? A resposta veio como um relâmpago na escuridão, cortando o céu num brilho frio.
-Esteri... – Tapio murmurou tentando conter as batidas exaltadas de seu coração, sentiu um arrepio subir pelos seus braços.
-Tapio... Quanto tempo... – que tipo de voz a luz tinha? Tranquila e morna, esse era o tipo de voz que Esteri tinha, a criança mais meiga e gentil que passou pelos antigos mestres e ainda assim se tornara uma assassina.
-Esteri... o que você...?
-Você não ia entender, Tapio. – ela falou escondendo as mãos atrás das costas enquanto olhava para o lado, o rosto corado. Cabelos negros cacheados num rosto arredondado como se fosse uma criança ainda. – Você não sabe como é sentir um demônio dentro de você... Também está procurando a Louhi? Podemos procurar juntos...
-O que vocês querem? Me diga Esteri. – ele pediu entristecido.
-Liberdade. – ela falou sorrindo – Humanos vivem suas vidas, demônios vivem as suas vidas... Nós não deviamos ficar nos jogando no meio tentando resolver os problemas dos outros.
-Aonde está sua irmã, Esteri?
-Heli morreu... – Esteri falou deixando escapar uma lágrima, sua irmã era sua guardiã, sempre estavam juntas. – Num dos trabalhos... Então o mestre Eemeli me consolou, eu nunca imaginei que ele ainda estivesse vivo.
-O que vocês vão fazer, Esteri?
-Me desculpe, Tapio. Mas para sermos livres, primeiro eu preciso acabar com todos os caçadores de demônios... Você e todos os outros sacerdotes têm que morrer. – ela começou a chorar. – Me desculpe mesmo...
-Se está tão triste não devia fazer isso. – ele murmurou erguendo as mãos com as contas.
-Não devia, mas eu quero... Eu quero outra vida...
-Matar parece um péssimo jeito de conseguir isso.
Tapio não teve muito tempo pra admirar o que acontecera com Esteri, estava ocupado conjurando uma barreira ao redor de si quando as lágrimas da garota congelaram, assim como seus braços de onde brotaram lâminas de gelo, mesmo atrás de sua barreira podia sentir o frio apesar das lâminas não o terem machucado. O triângulo de luz iluminava a imagem congelada e cheia de espinhos de Esteri, um único selo em forma de flor marcado em sua testa. Ao olhar para o chão notou o gelo se espalhando a partir dos pés dela, caminhando na sua direção, envolvendo a floresta num abraço mórbido.
-Não adianta, Tapio. Eu sinto muito, mas sua barreira não vai funcionar... – Esteri afirmou com uma expressão chorosa.
-Eu não quero brigar com você, Esteri.
-Eu também não queria brigar com você, Tapio... Eu vou te congelar vivo, porque não quero destroçar você... Você foi sempre muito gentil comigo... – ela sorriu tristemente, um sorriso debil de um demente seria a descrição exata.
-Eu não posso morrer tão fácil, Esteri. Ainda tenho coisas pra fazer...
-Tapio! – ela gritou quando ele deu um soco na própria barreira, a luz se esmigalhou como cacos de vidro voando na direção dela que se protegeu com mais gelo. – Não me machuque! Eu queria que você não complicasse as coisas!
-Eu vou libertar você, Esteri. E sei que Heli vai recebê-la de braços abertos...
-Você não mata nem insetos, Tapio...
-Louhi... – Esteri e Tapio pareciam surpresos com a voz que chegava de tão perto, ninguém a viu chegar até ali.
-Eu lembro de você, a que cantava com a irmã... – Louhi murmurou levantando a saia para pegar Aku. – Parece que é sério. Eu reparei que tinha alguém tentando matar Ukko e decidi voltar, mas não sabia que eram velhos conhecidos...
-Sinto muito, Louhi, mas...
-Me poupe. – Louhi pediu estapeando o ar. Os olhos de Louhi pareciam enxergar mais do que o rosto gentil e choroso de Esteri – Você veio por mim, não foi? Então para de se distrair com ele...
-Está bem. – Esteri falou abaixando as mãos de gelo afiado. – Monstros primeiro.
-Monstros? Claro... – Louhi baixou o rosto.
-Louhi, não! – Tapio estendeu a mão para ela, mas Aku que tinha se tornado um bastão o empurrou para longe num movimento só. Sentiu o impacto doloroso nas suas costelas ouvindo uma estalar. – Louhi...
-Que horror... – Esteri murmurou levando as mãos ao rosto, seu espanto aumento ainda mais quando Louhi puxou de volta o bastão. – Eu estou... com medo...
Tapio sabia muito bem quais eram os sete selos de Louhi, mas nunca a vira usar todos. Era justificado, o selo na testa de Esteri era o de uma feiticera que vivia nas montanhas de gelo, ele nunca vira um selo tão poderoso, talvez mais que os sete de Louhi juntos. As marcas pelo corpo dela, as asas de metal que saíram bruscamente respingando sangue ao redor e aquele rosto, com olhos prateados que brilhavam e dentes afiados, marcas negras em seu rosto como uma máscara. As marcas eram parte de selo, mas aqueles olhos e os dentes, aqueles eram de Louhi, ele sabia agora. Aquela era Louhi esse tempo todo?
-Que tipo de monstro você é? – Esteri perguntou lançando pedaços de gelo sobre Louhi como uma garota que atira objetos numa barata. Todos bateram contra as asas de metal que se fecharam na frente de seu corpo, uma pequena fresta se abriu permitindo ver o rosto.
-Primeiro Selo. Troll... – Louhi murmurou a resposta.
-Por isso ela é tão forte e dificil de machucar. – Tapio murmurou, daquilo ele sabia.
-Segundo Selo. Lobisomen... – ela continuou indiferente, a corrente de Aku se enroscou em seu braço, formou uma manopla no lugar do bastão.
-Impossivel...
Lobisomens eram uns dos monstros mais rápidos que existiam, dificeis de encontrar por se fazerem de humanos tão bem. A idéia de alguém conseguir capturar um e lacrá-lo tendo apenas o selo de um troll era irreal. Esteri não quis ouvir o resto, cada vez atirando mais gelo em Louhi que nem ao menos se mexia como se tudo aquilo fosse fútil demais para uma reação. Tapio, no entanto, teve que fazer uma barreira para não ser acertado pelos ricochetes, ela continuou falando. Terceiro Selo, sereia, não era mera alteração da sua voz que permitia indução, as unhas ficavam afiadas e fortes como garras, assim como os dentes fortes o bastante para roer ossos de homens.
-Quarto Selo, Espectro. – não sentir dor, não fazer barulho. – Quinto selo, Corvo.
-Essas asas são amaldiçoadas... – Esteri murmurou, corvos eram maus agouros, dificílimos de matar, diziam que suas asas tinham o peso da sentença de um condenado.
-É um bom escudo, pior não fica...
Tapio pensou alto, lembrava de ter sido contra aquilo, mas Louhi insistiu, pois não queria matar o corvo. Um corvo não é como outros demônios, ele não simplesmente fica quieto e responde aos selos como os outros, por isso quando Louhi chegava naquele selo o resultado era machucar a si mesma. Não conseguia calcular a dor daquelas asas saindo das costas dela rasgando a pele, mas também não conseguiu calcular muita coisa. Esteri acabou indo parar no topo de uma coluna de gelo lançando verdadeiras espadas cristalinas, mas Louhi continuava como se nada tivesse acontecido.
-Sexto Selo, Feiticeira. – feiticeiras tem corpos frágeis por natureza, mas a manipulação de energia e matéria que elas fazem as tornam muito perigosas, ao ponto de em alguns casos poderem se regenerar. – Sétimo Selo...
-Jalmari, a pantera... – Esteri murmurou reconhecendo os olhos, eram os mesmos. – Você... é mesmo filha dele...
-E Aku... – Louhi murmurou erguendo a mão direita, a manopla de metal frio. – Agora pare de brincar, Esteri. Ou você não vai ter nenhuma chance.
-Mesmo que não brinque ela não tem chance, mestra... – Aku riu-se.
O sacerdote reconheceu medo genuíno nos olhos de Esteri quando Louhi ergueu a mão, ele lembrava bem do sétimo selo, uma pantera velha, mas que mesmo assim deixou Louhi de cama por uma semana e ele por quase um mês repousando depois de fazer o selo. Ele nunca poderia imaginar que o monstro que agia como um predador sem consciência era pai de Louhi, apesar daquilo explicar como ela caçava tão bem. Mas não era só aquilo, Jalmari podia ser uma lenda entre os monstros, uma lenda velha ainda assim uma lenda, mas Aku era a antiga arma do Exterminador. Logo o medo se encolheu e Esteri sorriu.
-Que alivio! Assim o mestre Eemeli não deve ter problemas. – Esteri comentou sorrindo e levando as mãos ao coração. – Você é mesmo um animal, Louhi... Se não teve piedade nem do próprio pai eu que não terei de você!
-Louhi!
Foi a última coisa que ouviu de Tapio antes de ignorar a presença dele por completo, carregado pela rajada de vento, neve e pedras pesadas de granizo, o metal de suas asas estalava conforme congelava e teve que batê-las com força para soltar o que o gelo juntara. Louhi se movia com a facilidade que outros não tinham, Esteri não era de se mover, ela deixava o gelo e a neve fazerem todo o trabalho e aquilo funcionaria. Mas desde Aku lhe congelar de dentro pra fora, o frio de Esteri parecia irrelevante e dançar entre a neve estava parecendo estranhamento divertido e romântico.
-Mestra, você consegue se ver nessas colunas de gelo? – Aku perguntou enquanto desviavam de estalagmites cristalinas e afiadas.
-Consigo... – Ela falou olhando o próprio reflexo.
-Olhe melhor... – ela sentiu a mão dele a puxando, podia ver nos reflexos do gelo a imagem de Aku a conduzindo a dançar entre o gelo que a atacava. – Já me reconhece?
-Dr...Aku... – ela murmurava enquanto dançava. – Dr... Aku... la...
-E você? Pode se reconhecer? – ele perguntou a encarando, sentia as mãos dele deslizarem pelo seu pescoço. – Um miado, um rugido... Você daria um excelente bichinho de estimação, minha mestra.
-Aku... – ela chamou.
-Eu vou cuidar de você, mestra. Minha mascote... – ele falou sorrindo, podia ver no gelo os olhos vermelhos brilhando – Essa cadela tem que aprender uma lição.
-Tão frio... – Louhi começava a sentir os braços e pernas congelando.
-Eu entendo. Não se preocupe, vou te esquentar... – ele garantiu. – Você não precisa de mais nada, mestra...
A floresta se tornara um jardim congelado de reflexos gélidos, Louhi nem notara que estava com os olhos vazios já há algum tempo, que seu corpo se movia sozinho, que sua vontade era apenas uma chama morna de calor. Toda consciência que tinha estava aprisionada entre blocos de gelo e sopros de neve, já não era humana há tanto tempo, que aquela consciência parecia banal, cada vez mais distante e isolada. Nunca fora humana. Olhos prateados brilhando para o céu noturno, só enxergou de verdade quando estava na mesma coluna de gelo que Esteri, ela estava em seus braços, perfurada nas costas pelas pontas de suas asas, Aku como uma garra cravada nas costelas dela.
-A estrela da manhã, brilha se desmanchando, como cristais de gelo sob o sol. – ela cantarolou baixinho encarando os olhos que escureciam de Esteri, lábios que tremiam tão próximos. – Brilhe mais um pouco, para aquecer o frio, que vem com a manhã. Brilhe para se despedir da escuridão, que desmancha meu eu, me deixe sã. Minha estrela da manhã...
-Estrela da manhã... – Esteri murmurou. – Brilhe se desmanchando... Cristais de gelo...
Louhi chegou a sentir o braço de gelo afiado de Esteri lhe perfurar a barriga, mas não soltou a jovem, esperou que ela finalmente fechasse os olhos para a deixar cair no chão, o gelo se derreteu, escorrendo como o sangue morno. Com a mão direita segurava fechado o ferimento, um frio formigante se alastrando. Nunca fora humana de qualquer jeito, então porque se sentia tão monstruosa naquele momento? Por outro lado Esteri, parecia mergulhada numa paz luminosa.

Memórias

9
-Louhi! – era o menino Tapio, ligeiramente magro demais, o rosto de quem queria muito fazer algo, mas não tem porquê.
-O que você quer agora? – ela era o tipo de criança que assustava muitos adultos, os olhos cinzas e o jeito de animal selvagem, não parecia bem uma criança.
-Eu sou seu guardião, nós deviamos ficar juntos... – Ele falou estendendo a mão pra ela com o mesmo sorriso de sempre.
-Não. – ela falou estapeando a mão dele – A única coisa que nós devemos fazer é nossa parte.
-Mas Louhi...
-Só porque sobramos e agora você é meu guardião não quer dizer que temos que ser amigos...
-Por que não?
-Você é ingênuo mesmo...
Tapio lembrava todos os dias, de como fora assistir Louhi sair andando sozinha pela primeira vez. Cada passo silencioso o fazia imaginar que tipo de força a movia, seus olhos não demonstravam qualquer vontade de sensações vitais, qualquer emoção. Ainda podia assistir ela se afastar, sem nem dizer o motivo e fingir que nada importava, desde pequena ela delimitava a distância entre os dois. O guardião podia lembrar de olhar para o lado e ver na distância Brita e Ensio brincando entre as árvores, os mesmos sorrisos e o mesmo brilho nos olhos dos dois. Mas ele nunca esteve tão longe do olhar de Louhi, como de quando ela caminhou para longe da casa de Emma.
-Tapio? – Lahja chamou com a mão no ombro dele.
-Desculpe estava perdido em pensamento. Nos separamos aqui?
-Mestre Ukko vai avisar Emma e eu tenho que voltar ao trabalho. Vá cuidar de Louhi, espero ver vocês de novo numa situação melhor!
-Claro... – como se ela precisasse de seus cuidados, foi o que ele pensou.
-Tapio, você está bem? – Lahja segurou sua mão, sentiu uma onda de calor passando por seu braço. – Tapio?
-Lahja...
-Nem pense nisso. – Lahja falou sorrindo, tinha algo de morno nela, naturalmente vívido e caloroso. – Vá logo pra casa.
-Está bem... – ele falou recebendo um beijo no rosto da mulher.
Por algum motivo se lembrou novamente da infância, quando depois dos exercicios Louhi saía andando sozinha, se escondia em algum canto enquanto esperava o tempo passar. Lembrava que Lahja lhe fazia companhia e o mandava ir procurar Louhi, mas sempre que ele procurava não conseguia achá-la, afinal ela não fazia barulho e sumia na paisagem quando assim queria. Acabava ele próprio distante de tudo e todos, sozinho olhando o céu, talvez o mesmo céu que Louhi olhava enquanto estava cansada se escondendo.
-Louhi...
-Por que você continua me seguindo? A aula acabou... – a única vez que a encontrou ela estava sentada na sombra de uma árvore, parecia chorar, apesar dele não ver lágrimas.
-Eu sei, mas como seu guardião é meu trabalho tomar conta de você. E eu também sou mais velho. – ele falou sentando ao lado dela.
-Eu não preciso que você tome conta de mim. Não é esse o seu trabalho...
-Louhi, por que você sempre me trata assim?
-Idiota... – ela falou entre dentes se levantando, por mais que parecesse arisca, por algum motivo ele sempre achou que Louhi na verdade só era sozinha. – Seu trabalho é me matar, para de tentar ser meu amigo!
-Mas eu não vou te matar! – ele falou tentando levantar, parecia ter levado um choque.
-Quieto! – ela falou o empurrando de volta pro chão – Você ainda não entendeu? Você tem que ficar por perto, pra quando chegar a hora você me matar...
-Eu não vou te matar, Louhi... – ele falou sorrindo ao mesmo tempo que chorava – Eu prometo.
-Não adianta falar isso, é...
-É sério. Eu vou cuidar de você, aí não vou precisar te matar. Eu não vou deixar você deixar de ser humana!
Foi a única vez que ela não respondeu, também não foi embora sozinha. Ficaram sentados olhando para o céu, sem falar nada, duas crianças olhando para o futuro, tentando enxergar o que iria acontecer. De algum jeito ele sabia que ela tinha entendido, não era que ele simplesmente não queria matá-la, ele não podia... Assim como Brita não podia matar Ensio, ele entendia. Por isso que ele não podia deixar ela chegar ao ponto que Ensio chegou, não era uma opção aquilo acontecer. O que ele não percebeu é que Louhi entendeu aquilo de outro jeito, de seu próprio jeito, afinal ela sabia mais que ele.
-Louhi!? – Ele chamou ao chegar na casa, parecia abandonada. – Louhi?
Cada passo ao subir as escadas era como desmembrar pequenas lembranças de seu passado, sentia que algo o observava, mas não tinha certeza do que era. Quando chegou na porta do quarto e a abriu sentiu um frio anormal subir pelas suas canelas, podia ouvir o barulho de correntes se arrastando e batendo umas nas outras, não chamou o nome dela de novo, teve a impressão de que ela não iria ouvir. Nunca vira tantas correntes antes, presas as paredes, enroscadas na cabeceira e no pé da cama, espalhadas pelo chão, amarrando braços, pernas, pulsos e pescoço.
-O que é isso...?
-Hmnn...
-Louhi... – ele murmurou folgando uma corrente que estava ao redor do pescoço dela, era como se ela estivesse tendo um pesadelo, o rosto contraído numa careta. Ou era um sorriso? Não era comum ver ela sorrindo. – O que está acontecendo com você?
-Não precisa fazer uma cara tão preocupada.
Ele virou na direção da voz, podia ver claramente o homem cheio de correntes, correntes que ligavam ele a ela. Nunca o vira antes, mas ao notar a corrente no pulso dos dois soube instintivamente que era Aku. Os cabelos negros dele, os olhos vermelhos, Tapio sentiu o frio aumentar, como se não pudesse estar mais distante da vida, Aku era um monstro. Artefatos são feitos com um receptáculo e um monstro, o monstro é lacrado dentro e o objeto se torna mágico, usando as forças do monstro e o monstro usando a força de quem usa o objeto. Sabia daquilo, mas nunca imaginara Aku daquele jeito.
-O que foi? Nada a dizer guardião?
-O que você fez com ela?
-Nada, ela só está dormindo... – Aku respondeu se aproximando da cama, deixou os dedos deslizarem pelo rosto de Louhi. – Estava cansada.
-Eu não vou perguntar de novo...
-E o que você poderia fazer? Eu já estou lacrado. – Aku falou mordiscando a bochecha de Louhi que virou o rosto enquanto dormia. – Agora nós somos um...
-Um...?
-Agora ela não vai perder o controle, eu não vou deixar. Não era o que você queria?
-Eu posso cuidar dela... – Tapio falou cerrando os punhos.
-Mas ela não quis que você cuidasse dela. – Aku respondeu sorrindo – Queria tanto cuidar de si mesma, resolver tudo sozinha pra você não ter que sujar as mãos. Que acabou assim... Você é desnecessário guardião.
-Se você machucar ela...
-Não se preocupe. Ela vale muito mais pra mim viva, ainda mais com tantos monstros interessantes por dentro. – Aku sorriu, gostava de Louhi dormindo, parecia tão frágil, tão humana e delicada. – Qual a sensação de colocar todos esses monstros dentro dela? Qual a sensação de arrancar aos poucos a humanidade de alguém?
-Cala a boca!
-Pare de se iludir, ela não é mais humana, não precisa da sua proteção. – Aku falou maldosamente puxando Louhi para seu colo. – Eu vou cuidar dela de agora em diante. Entendeu?
-Eu mandei calar... Louhi?
Não era a primeira vez que ele a via acordar, mas foi a primeira vez que ela abriu os olhos de uma maneira tão vazia e sem sentido, era como ver o pai de Aimo mais uma vez, como se não restasse nada naqueles olhos. Só durou um segundo, mas ele se assustou, até que Aku e as correntes sumiram, só havia agora uma corrente e o cilindro sobre a cama, Louhi o encarava como quem espera algo. Mas ele estava congelado, não conseguia dizer, sequer pensar em dizer, nada. Os olhos aos poucos recuperando o cinza animalesco, um pequeno brilho de vida.
-Algum problema, Tapio?
-Você devia parar de usar Aku... – Tapio murmurou.
-Não fala besteira... Você sabe que eu sou a mestra dele...
-Não importa! – Tapio gritou a puxando pelos braços – Por favor, Louhi... Só dessa vez me ouve!
-Não dá. – Louhi falou levantando o braço, a corrente presa. – Por que você está tão nervoso? Já falei que não é seu trabalho se preocupar comigo...
-Eu só estrou preocupado com você, porque eu me importo... Essa coisa não é diferente dos monstros que...
-É sim. – Louhi falou se levantando – O Aku, sem esses selos, já teria tomado conta há muito tempo. Mas ele não é como os outros, Tapio, ele não quer tomar conta...
-E mesmo assim você usa ele?
-Ele está selado, Tapio. – Louhi falou como quem encerra o assunto.
-Não, não está... Pelo menos não completamente e você sabe disso. Se estivesse você não poderia usá-lo.
-Tapio... Eu já não tenho muita humanidade em mim, tirando partes desse corpo e às vezes a minha própria mente. – Louhi falou soltando um longo suspiro – Você não precisa se preocupar comigo, porque já não tem com o quê se preocupar. Um demônio a mais ou um a menos já não importa, é só um detalhe.
-Louhi, não fala isso.
-Tapio... Para de se iludir... – ela estava soando como Aku – Você sabe que já faz anos que eu não sou mais humana. Eu vou dar uma volta...
-Louhi!
Por que ele não conseguia enxergar? A compreensão de tudo escapava entre suas mãos e rodava em sua mente, memórias despedaçadas de tempos passados. Queria que tudo fizesse sentido, acabou rezando em voz baixa e quando deu por si estava em mais uma lembrança, sua casa em chamas, sua familia morta, fora assim que fora parar com os antigos mestres. Diferente de Louhi, diziam que ela não tinha pais, os alunos zombavam da garota falando que ela era filha de animais, por isso a acharam perdida na floresta. Talvez fosse isso o que Tapio sempre gostou nela, ela não era como os outros, parecia um animal. A casa pegando fogo, sempre tinha pesadelos com isso quando garoto.
-Tapio se acalme. – os mestres mandavam – Você não deve atacar todos os demônios desse jeito...
-DEVO SIM! ELES SÃO MONSTROS! – ele criança gritava antes de compreender o que estava acontecendo. – EU ODEIO TODOS ELES!
-Tapio...
-Eu odeio todos os demônios... Todos... – Tapio murmurava em lágrimas – E eu vou proteger todos os humanos e animais, matando todos os demônios...
-E se for um humano possuído por um demônio? Já pensou nisso?
-Então não é mais humano!
Agora fazia sentido. Lembrou também do primeiro dia de aula, depois de feitas as duplas, lembrava de um dos mestres ter explicado que os assassinos se tornavam monstros para poder matarem monstros. Era um sacrificio que eles tinham que fazer, uma batalha para continuarem humanos, mesmo depois de criar demônios dentro de si. Louhi fingia que não prestava atenção de longe, em todas as aulas, mas ele sabia que ela ouvia tudo com aquele jeito animal que espreita sem ser notado. Ele dissera que odiava demônios e ia matar todos, ela sabia que um dia seria um... Todo aquele tempo. Mas ele não a odiava, muito menos a queria morta. Queria que ela fosse...
-Pare de pensar essas coisas Tapio... – era Ukko chegando em casa.
-Mestre?
-Louhi nunca mais vai ser humana. – Ukko falou jogando suas coisas sobre a cadeira de balanço. – E mesmo que você fosse pequeno quando gritou daquele jeito. Você realmente foi sincero ao dizer que odiava todos os demônios e iria matá-los.
-Eu não odeio ela, ela é diferente! Ela é só uma caçadora...
-Não, Tapio. Ela nunca foi humana.
-Do que está falando?
-Nenhum outro aluno gostava dela, porque eles sabiam. Eu achei que você já teria percebido, mas parece que estava muito ocupado preocupado com ela...
-Louhi é...?
-Você lembra do sétimo demônio que você selou dentro dela? – Ukko perguntou.
-Aquela pantera de olhos prateados?
-Sim. Aquela pantera era o pai de Louhi, alguns demônios se misturam entre os humanos para se esconder por algum tempo. – Ukko falou pegando um pouco de água para refrescar a garganta – Quando Louhi nasceu, a mãe dela se assustou e a abandonou depois de algum tempo na floresta. Ela nunca foi humana... Mas também nunca foi outra coisa.
-Isso quer dizer que...
-Que ela nunca se aproximou de você, por saber o quanto você odiava demônios. Por saber que você inevitávelmente um dia iria matá-la.
-Irônico, transformar a garota que você gosta naquilo que você mais odeia... – Tapio e Ukko tiveram que sair da casa para avistar a fonte da voz.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Costume

8
-Eu sabia que vocês viriam... – os longos cabelos negros lisos, os olhos cor de madeira acentuando a pele pálida do rosto. – Mestre Ukko, Tapio...
-Brita... Por que não fez seu trabalho? – Ukko perguntou se aproximando da garota no jardim, parada com um enorme bastão cheio de selos.
-Você sabe o que é amor, mestre? – Brita perguntou com um sorriso. – Como eu poderia fazer meu trabalho, se meu trabalho é contra o que eu mais amo?
-Você sabia disso desde o início... Se o assassino perder o controle, é trabalho do Guardião detê-lo. Pois só o guardião tem o poder para isso. – Ukko falou como quem dá uma aula.
-Pra você é fácil, Exterminador. Nunca fez nada além disso a vida inteira! – Brita exclamou erguendo o bastão. – Mas eu...
-Brita... – Tapio chamou ficando a frente do mestre.
-Nós deviamos protegê-los, não é mesmo mestre? Você sabe Tapio! – Brita exclamou com lágrimas escorrendo pelo seu rosto. – Nosso trabalho é protegê-los, mesmo deles mesmos e ainda assim... Eles parecem tão mais fortes, tão... Sempre resolvendo tudo, sempre nos ajudando e correndo todos os perigos...
-Eu entendo... – Tapio concordou erguendo a mão como em prece. – Eu sinto a mesma coisa, Brita. Às vezes o que fazemos parece tão insignififante que parece que, qualquer coisa que pudermos fazer é mais do que uma obrigação. Mas não é bem assim e você sabe!
-Eu sei... Sem mim ele nunca teria feito tudo aquilo. – Brita falou limpando o rosto com a manga comprida de sua blusa. – Mas se ele falhou agora é porque eu falhei também, não tenho o direito de puni-lo. Estamos sempre juntos... Tudo que posso fazer é ficar ao lado dele.
-Brita!
-Deixe-a Tapio. – Ukko falou deixando a bengala cair – Se é assim, que continuem juntos após a morte.
-Vou deixá-lo orgulhoso, mestre... – Brita falou se preparando – Afinal eu sou a melhor aluna.
-Os melhores alunos, nem sempre dão os melhores mestres... – Ukko murmurou. – Tapio.
-Selar! – Tapio e Brita exclamaram juntos, formando uma redoma de luz ao redor deles e do mestre.
-Uma batalha entre guardiões é deveras fútil...
-Pilar! – Brita gritou batendo com o bastão no chão, Tapio teve que saltar para não ser atingido por um bastão de luz. – Só se ambos são iguais.
-Eu não gosto de lutas... – Tapio murmurou desenrolando as contas de seu pulso – Mas se é assim que tem que ser...
-Quieto! – Brita gritou o acertando em cheio no estomago com o bastão o fazendo voar alguns passos antes de voltar ao chão e se equilibrar – Você sempre foi o mais fraco entre todos. E se uma corrente é tão forte quando seu elo mais fraco, Ensio logo vai acabar com Louhi.
-Muito bem, Brita. – Ukko a parabenizou batendo palmas. – Mas se ele é o mais fraco, porque é você que está com problemas?
-O que?
-Eu sinto muito, Brita. – Tapio exclamou se levantando, puxou as contas. Cuspiu um pouco de sangue. – Muito mesmo...
-Quando...? – Brita perguntou sentindo a corrente de contas com selos apertar seu pescoço, tentou parti-la com seu bastão, mas foi inútil.
-Nós temos que ser fortes por aqueles que guardamos. – Tapio murmurou apertando as contas, fechou os olhos. – Eu preferia que isso não fosse necessário...
-Selo! – Brita gritou agitando o bastão, mas nada acontecia.
-Você lembra das aulas, Brita? – Ukko perguntou se aproximando lentamente. – O sacerdote, o guardião, possuí o poder dos selos de aprisionar e libertar energia. Tapio era sempre o último a fazê-lo, mas não porque não podia... Ele só não tinha porque fazê-lo ainda.
-Mas mestre! Meus selos...
-Também são energia. – Tapio murmurou a sufocando. – Você agora é apenas uma garota, Brita. Eu realmente preferia que tudo acabasse aqui, mas você prefere que não, não é mesmo?
-Me dê uma chance e eu vou partir seu pescoço, Tapio. – ela gruniu procurando mais ar.
-Mate-a logo, Tapio. – Ukko mandou.
-Ensio... – Brita murmurou antes de seu pescoço estalar.
-Temos companhia...
Quando Tapio se virou havia um pequeno batalhão de antigos humanos marchando pelos jardins, não tinha tempo para magoar-se com seus próprios atos ou sentir culpa, sequer compaixão, por Brita. Agora ela não precisava escolher entre o que queria e devia fazer, estava livre... Queria pensar assim, era melhor pensar assim do que lembrar que podia ser ele. Tapio por algum motivo sentiu mais frio que nunca aquele dia. Lahja e Louhi estavam cortando cabeças de mortos vivos, nem demônios nem humanos, apenas se arrastando a procura de comida. Aku se tornara uma enorme foice que Louhi girava emitindo uma canção funebre, Lahja usava as mãos e Ale de escudo.
-Ensio fez tudo isso?
-Quando Emma saiu eles ainda eram humanos.
Era triste ver a queda de um ser humano, não que fosse diferente de outro animal, mas o modo como parecia desajustado e deformado, os grunhidos que imploravam paz e misericórdia, os olhos sem vida e ainda assim conflitantes. Irrecuperáveis, mas pareciam ansiar voltar a serem humanos, Louhi tentanva entender aqueles chamados silenciosos, mas não conseguia. Olhava as marcas em seus pulsos, ao redor dos tornozelos e pescoço, cicatrizes tatuagens, marcas de selos. Selos que Guardiões fazem e que eles, os assassinos, podem usar, uma vez que o que foi selado descança dentro deles.
-Você está bem, Louhi? – Lahja perguntou com um sorriso, ela também tinha marcas, diferentes e em outros lugares.
-Claro...
-Você não mudou nada. Quantos são? – Lahja perguntou sorrindo arrancando a cabeça de um morto vivo.
-Sete ao todo. – Louhi respondeu decapitando os que sobraram – E você?
-Parei no décimo terceiro, acho que é suficiente e não sei se aguento mais que isso. Mas é claro que nós temos a vantagem... Ensio ser um de nós, já era de se esperar que aguentasse menos e se forçar daquele jeito.
-Não tem nada a ver com força, Lahja... – a voz trouxe lembranças.
-Ensio...
As duas se viraram para a escadaria, podiam ver os diversos simbolos em circulos espalhados pelo corpo dele, circulos são mais fortes que simbolos soltos e ele precisava de selos mais fortes. Ensio era um jovem louro de cabelos até os ombros, tinha olhos antes tão verdes, agora vermelho intenso enquanto um respingo de sangue escorria por seus lábios de presas compridas. A camisa branca aberta rasgada em vários pontos, a calça preta, as botas fazendo barulho quando ele andava. Diferente delas Ensio nunca ganhara um artefato, ele nunca precisou de um, mesmo antes de ter qualquer selo já fazia seu trabalho muito bem.
-Ensio? A sim... – ele falou ajeitando as mangas depois jogando o cabelo para trás – Quase me esqueci... Minha cabeça anda meio confusa.
-Seu idiota. – Louhi murmurou – Depois de dez selos você insistiu justo com um vampiro? Se não conhece seus próprios limites não conhece nada.
-Eu nunca fui tão cauteloso e relaxado quanto você Louhi, sempre nos fundos, dormindo conformada com o que era. Eu sempre quis ser melhor... – ele respondeu e ergueu as mãos, unhas compridas – E eu sou o melhor.
-Lahja, você sabe o que ele tem? – Louhi perguntou apertando Aku firme com as duas mãos.
-Se você me der tempo, posso descobrir...
-Quanto?
-Alguns minutos.
-Você tem dez... – Louhi falou transformando Aku em correntes.
-Não importa o que for mestra, não será um problema... – Aku comentou.
-Já querem me matar? Nem matamos a saudade ainda...
-Cala a boca, Ensio. Não deixe as coisas piores... Quarto selo pronto...
-Você acha que 4 serão o bastante? Espero que não tenha medo de onze demônios!
-O melhor? Que fanfarrão... – Aku não parava de rir.
Ensio era um monstro, era isso que acontecia se você não aguentava, tudo aquilo que lhe dava forças, se torna seu mestre e você se torna aquilo. Garras, presas, chifres, espinhos, asas, tantas possibilidades que simplesmente não somem mais, você se torna aquilo que você caça, você vira um demônio. O vampiro libertara os outros selos, quebrando Ensio se quebravam todos e agora todos respondiam apenas àquela vontade obscura que reside em todos nós. Louhi aparou os socos usando as correntes, por debaixo das mangas de sua blusa era possivel ver marcas descendo até perto do cotovelo, cicatrizes e tatuagens, marcando seu corpo.
-Idiota... – Ensio murmurou acertando um chute em cheio na barriga dela a jogando contra a parede, ergueu a mão e linhas a envolveram a amarrando e prendendo na parede. – Largue esse brinquedo... E chame seu guardião para lhe soltar, se Brita já não o tiver matado.
-Se ele fosse tão fraco assim eu já o tinha matado. – Louhi murmurou sorrindo, mas parecia mais uma careta, aquele chute doeu. – Mas não se preocupe, eu não preciso dele...
-O que diabos?
Ensio teve que pular para trás para não ser cortado junto com as linhas, asas que pareciam ser formadas de lâminas saltaram das costas de Louhi, asas pesadas e afiadas cujas pontas estavam leventemente manchadas de sangue. Da onde elas saíram um rasgo enorme na blusa e as marcas dos selos ao redor, ela odiava usar o quinto selo, era muito doloroso quando as asas saíam. Ergueu Aku como uma espada, calculava quanto tempo mais tinha que distrair aquele cara até Lahja dentro de seu escudo saber o que exatamente ele era. Tinha medo de alguma outra coisa perigosa estar lá dentro.
-Que tipo de selo doentio é esse? – Ensio perguntou levando a mão para perto do rosto no choque.
-Digamos que eu sou mais exigente que você. – Louhi comentou com um sorriso, só tinha sete selos, mas a maioria não era fácil de conseguir. – Para de brincar.
-Você que pediu... – ele falou deixando as garras aumentarem – Quando isso acabar talvez eu devore você também...
-Nos seus sonhos... – Aku exclamou por ela – Você é meu cardápio, mata logo esse "quero ser".
Quando um guardião prende um demônio, se o caçador pedir ele pode devorá-lo, não literalmente e completamente, apenas o essencial dele. O assassino devora o assassinado, deixando entrar em seu corpo sua força e qualidades, depois de engolido o guardião sela o demônio para que possa ser controlado. Lahja e Louhi tinham a vantagem, pois eram mulheres, seus corpos são melhores preparados para mudanças, já Ensio não, era mais dificil. Se um assassino não consegue digerir o que engoliu, o selo do guardião se parte e o demônio toma conta, o corpo é corrimpido e o resultado era aquele. Louhi temia chegar aquele ponto, aonde não iria aguentar e quebrar, por isso nunca passara do sétimo selo. Não queria ser ainda menos humana que aquilo.
-Louhi! – Lahja gritou assistindo a garota cheia de cortes amarrada por fios sendo sufocada, Ensio era mais rápido e mais forte e estava a batendo fazia algum tempo.
-Espere sua vez, Lahja. Eu vou pendurar ela na minha parede... – Ensio falou puxando os fios erguendo Louhi pelo pescoço, os braços esticados e as pernas presas juntas.
-Louhi! Troll, goblin, kobold, ogro, três demônios menores, diabrete, orc, lobisomen e vampiro! – Lahja falou todos os selos, todos os demônios que ele devorou e que o tornavam daquele jeito.
-Só isso? – Louhi perguntou, transformou Aku em uma faca e cortou os fios que a prendiam pela segunda vez com Aku e suas asas – Não é a toa que isso dói tão pouco.
-Quando você ativou o sexto? – Ensio perguntou notando as marcas na cintura dela, pareciam a envolver como um cinto.
-Quando você me prendeu de novo, antes que você me machucasse de verdade. Se não fosse o vampiro e o lobisomen, você não seria nada Ensio... Você só é rápido e resistente, mas com esse tipo de força não vai chegar a lugar nenhum.
-Um vampiro e um lobisomen, me parece um jantar balanceado.
-Eu vou te mostrar o nada!
-Barreira! – Lahja gritou, fazendo Ensio dar de cara com um enorme triângulo de luz que o jogou longe.
-Que tal uma cruz para o vampiro? Elas não funcionam de verdade, mas parece apropriado... – Aku se tornou uma lança com uma cruz na base e uma ponta cumprida afiada de maneira que parecia uma estaca. – Fazia tempo que não usava o sexto.
-Sua...
-Prisão! – Lahja gritou o mantendo preso numa caixa de luz. – Louhi eu não posso soltar ele...
-Não precisa... Aku...
-É só colocar força no braço, eu atravesso sem problemas... – Aku falou, aparentemente muito bem humorado com tudo que estava acontecendo. – Mestra... Posso beber todo o sangue dele?
-Descanse em paz, Ensio. Que seus demônios sejam devorados no inferno enternamente.
-Melhores tempos... – Lahja desejou desviando os olhos.
A lança arremessada por Louhi atravessou a parede de luz até os gritos de Ensio que esbravejava e batia contra sua prisão, atravessou o condenado tão facilmente quanto atravessaria espuma, a corrente enroscada na cruz levando até Louhi que parecia sentir o frio aumentar dentro de si como a incerteza. Não era ela que devia ter feito aquilo, era Brita. Quando um selo quebra daquela forma, quando o assassino se perde para os demônios, o guardião é quem deve trancá-lo e matá-lo. Quando puxou a lança o cadaver estava seco e gélido, lembrava pedra, parecia uma estátua. Não conseguiu brigar com Aku, afinal ela não respondera, mas sentia medo e pena daquele que um dia fora o melhor aluno dos antigos mestres.
-Louhi! Lahja! – era a voz de Tapio que veio correndo – Estão bem? Nos atrasamos com um bando de mortos vivos...
-Estamos, Louhi acabou com ele.
-A única criatura temerária dentro dele era o vampiro e um lobisomen, todos morriam sem um coração batendo. – Louhi murmurou levantando a saia e guardando Aku. – Ele sabia de seus limites, por isso engolia muitos fracos ao invés de poucos fortes, mas foram tantos que ao ambicionar algo maior o corpo dele não aguentou.
-Fazia tempo que não a via com asas, Louhi. – Ukko falou se aproximando.
-Mestre, você está bem? – Lahja perguntou notando as roupas rasgadas.
-O Mestre continua em forma, nem um arranhão, exceto em suas roupas. – Tapio comunicou. – Louhi...
-Eu vou pra casa... – ela falou dando as costas, saiu andando conforme as marcas se apagavam e as asas sumiam dentro de suas costas.
-Você vai se acostumar, Louhi. – ela já nem sabia se era Aku que falava ou sua própria mente.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Incomum

7
-Perdão... – foi tudo que Tapio conseguiu exclamar fechando a porta do quarto, ficou de costas para ela esperando Louhi se vestir, parecia ter passado uma eternidade debaixo do chuveiro. – Achei que estava deitada...
-O que foi? – ela pareceu não se importar, um tom de voz frio e distante se encaixou em sua garganta. Ela engoliu em seco tentando fazê-lo sumir.
-Temos visitas incomuns...
-Incomuns?
-É, do tipo que não nos visita normalmente. – Tapio reformulou e quase caiu no chão quando ela abriu a porta. – Você está bem, Louhi?
-Estou. – ela respondeu com um sorriso pontudo.
-Qual é a da corrente?
-Você não quer saber... – ela respondeu gesticulando enquanto descia as escadas, ele ainda não se acostumara com o tilintar, era um som novo.
Não havia ninguém na sala, mas do lado de fora se instalara uma mesa de chá, havia uma garota jovem de cabelos ruivos cacheados sob uma sombrinha, usava trajes antiquados e luvas, lembrava uma boneca, ao lado dela de pé um homem vestido como um mordomo de barba bem feita olhava com suspeita para Ukko que servia o chá. Louhi podia notar de longe que aqueles dois não eram humanos, não apenas pela estranheza de suas aparências, mas também pelos detalhes mais sutis. As unhas afiadas do mordomo, os dentes salientes da garota, o cheiro que o vento trazia quando batia na direção da casa.
-Louhi, junte-se a nós... – Ukko chamou.
-Um prazer conhecê-la, Louhi. – a garota falou com um sorriso – E um prazer revê-lo, Aku...
-Velha conhecida? – Louhi perguntou em voz alta.
-Algo parecido. – Ukko e Aku responderam ao mesmo tempo.
-Agora entendo porque Tapio parece tão preocupado e cuidadoso com você. – ela comentou tomando um gole quase infimo do chá que lhe foi servido. – Você tem olhos capazes de domar um lobo, mas o corpo aparentemente frágil de sua presa.
-Falando em lobos... – Louhi murmurou se virando para o mordomo.
-Adawolf é um leal amigo e companheiro de vivência, não fará nada contra vocês a menos que provocado. – ela interveio sorrindo por debaixo da sombra para o homem que sorriu brevemente de volta. – Sou Emma e espero que possamos chegar a um acordo.
-Certamente que podemos. – Ukko falou sorridente ao mesmo tempo em que Tapio se juntava a eles – Não há motivo para que isso não aconteça...
-Ouvir isso de quem matava sorrindo tantos semelhantes soa irreal. – Adawolf falou pela primeira vez, parecia um rosnado.
-Eu já me aposentei...
-Creio que terá que suspendar a aposentadoria, não me leve a mal, não estou subestimando seus alunos. Mas é muito diferente explodir trolls e o que viemos aqui discutir... – Emma falou de maneira muito séria, Louhi imaginou se ela sabia da bazuca para ter dito aquilo.
-Isso é impensável... – Tapio comentou, mas foi cortado por um gesto de Ukko e Louhi.
-Vampiros e Lobisomens estão entre os monstros de classe mais alta, não é impensável que tenhamos trabalho com eles... – Louhi comentou soltando um longo suspiro – Se fosse algo simples, vocês mesmos teriam resolvido, não é mesmo?
-Claro. Mas apenas vocês não seram o bastante, então a caminho daqui chamei mais alguém. – Emma falou com um sorriso.
-Olá crianças. – Lahja cumprimento abraçada ao seu cajado. – Mestre Ukko, você não mudou nada...
-É tão ruim assim? – Ukko perguntou com um ar sombrio.
-Temo que seja, mestre. – Lahja falou baixando o rosto – Ruim e triste... Vocês podem se lembrar dos melhores alunos dos antigos mestres?
-Não vai dizer que eles morreram! – Louhi exclamou se aproximando.
-Acho que na concepção de vocês, aconteceu algo muito pior... – Emma comentou com um sorriso afiado – Muito pior.
-Entendo. – Ukko murmurou fechando os olhos por um momento.
Todos se lembravam bem, os alunos que sempre eram os primeiros a receberem elogios, também foram os primeiros a exercer suas funções. Ukko dizia que eles eram bons demais para serem reais e que algum dia tudo iria desmoronar como uma grande mentira, dá pra ver que ele estava certo. Já tiveram muitas tarefas estranhas, mas caçar seus antigos colegas de aprendizado era a mais bizarra de todas, fazia Louhi pensar se um dia ela não seria a caçada, se um dia pediriam a cabeça de Tapio numa bandeja.
-Não tenha esses pensamentos, Louhi. – Tapio murmurou para ela. – Você sabe que essa situação pede isso...
-E o que nos impede de acabar nessa situação? – Louhi retrucou.
-Nada, mas não seria muito divertido... – Aku comentou dentro da mente dela. – Eu prefiro você viva Louhi.
-Tudo começou com a caça ao meu irmão, não guardo nenhum rancor quanto a isso, os asseguro. – Emma falou colocando o chá de lado – Aqueles dois fizeram um bom trabalho ao matá-lo, mas óbviamente o acabamento foi atrapalhado e permitiu que todo aquele trabalho não valesse nada. Ensio, é esse o nome?
-Sim, o primeiro da turma. – Lahja concordou com a cabeça. – Sua guardiã é Brita.
-Ele perdeu completamente o controle e agora é uma ameaça não só a demônios como eu e Adawolf. – Emma falou sériamente, tinha algo em seus olhos que lhe dava um ar de autoridade – Todos meus empregados foram massacrados e Brita incapaz de reajustá-lo ou matá-lo juntou-se a ele.
-E você quer que nós façamos isso? – Ukko perguntou sorrindo.
-Me parece bastante razoável, uma vez que você ajudou a fazê-los como são, mestre Ukko, o Exterminador, seja você quem os mande pro inferno. – a garota concluiu se levantando de maneira lenta – Eles estão devidamente presos em minha mansão, mas não por muito tempo. É tudo que farei para ajudá-los.
-E o que ganhamos com isso? – Ukko insistiu.
-O prazer de salvar a alma de seu companheiro da maldição eterna. Lahja tem o endereço, espero que aproveitem a viajem.
Emma se afastou como algum membro da realeza, Adawolf lhe cobria a retaguarda a seguindo há alguns passos de distâncias, ambos impessoais e indeferentes ao que seria feito a seguir, mas havia algo de compreensivo na forma como trataram do assunto. Muitos teriam simplesmente deixado Ensio e Brita fazerem o que quisessem, aquilo preocupou Louhi por um momento, era como se em sua desumanidade Emma fosse mais humana que ela. Sentiu o toque de Tapio a chamar, assistiu Ukko ir pegar suas coisas e Lahja juntar as mãos como que empolgada com a perspectiva.
-É bom ter companhia nos trabalhos para variar. – ela comentou sorrindo – Uma pena que seja em condições tão tristes.
-Ensio sempre pareceu tão forte e seguro, não consigo imaginá-lo perdendo o controle.
-Tapio, somos todos humanos, estamos sujeitos a esse tipo de coisa. – Lahja comentou de maneira sutil – Ainda bem que não fui eu, vocês teriam o dobro do trabalho...
-Isso não é bem verdade, Lahja. – Louhi comentou parecendo sentir-se aliviada – Você é só uma, apesar de ser muito boa nos dois principios, ainda assim... É só uma. E considerando que Brita não fez o que devia, estamos na mesma.
-É, a responsailidade é de Brita. – Tapio concordou pesaroso.
-Pode a culpar, Tapio? Você sabe bem o peso que um Guardião carrega, acha que conseguirá carregá-lo na sua vez? – Lahjah perguntou sem hesitar.
-Pra mim é mais fácil. – Tapio falou baixando o rosto e começando a se afastar – Louhi sempre me manteve a bons palmos de distância...
-Mesmo assim ele nunca a mataria... – Aku comentou como quem ri.
-Como é possível? – Lahja murmurou vendo Louhi também se afastar, a resposta veio de Ukko que retornava de dentro da pequena casa. – Mestre...
-É preciso unir-se na hora certa, caminhar lado a lado enquanto possível e quando o momento pedir... É preciso a coragem de cortar todos os laços, incluindo o da vida. – Ukko falou sorrindo. – Nós os ensinamos para isso... Distantes como se mantém é mais dificil cumprir seus trabalhos agora, mas o fazendo... a assassina dá ao guardião a chance de realizar mais fácil seu trabalho mais tarde.
-Ela se mantém longe de propósito?
-Para não acabar como Brita e Ensio, sim. – Ukko comentou com um sorriso – Desde crianças, eu sabia que eles acabariam assim...Louhi também.
-Como, mestre?
-Se você consegue mais que os outros, você se testa mais que os outros.
-Ego? Acha que ele acabou assim para testar seus próprios limites?
-Eu acho que ele calculou mal seus limites. Assassinos, devoradores... O pesadelo dos demônios. – Ukko deu uma risada breve – Ensio devia ser mais sábio do que mexer com vampiros. Nunca é saúdavel jantar com um vampiro...
Lahja seguiu com Ukko, enquanto isso Louhi e Tapio iam na frente, separados por alguns palmos seguros e o frio presente no ar e nas correntes entre Louhi e Aku. Apenas um silvo distante do vento se fazia presente pelo caminho, apenas a solidão da despedida do dia saudando a escuridão. Chegar a antiga casa de Emma era como visitar um daqueles filmes de época, o portão de ferro antigo, a construção de séculos passados, o jardim que provavelmente exigia a atenção de várias pessoas, tudo nostálgico e trágico na escuridão do luar entre as nuvens.
-Eu preferia um vampiro... – Tapio comentou.
-Nós não escolhemos nossos trabalhos. – Ukko falou puxando a bengala para perto do rosto, a usou para ajeitar um par de óculos que pegara por algum motivo. – Apenas como os realizamos.
-Mestre Ukko... – Lahja chamou com um gesto. – É melhor não irmos todos de uma vez.
-Dividir e conquistar, achei que isso fosse uma estratégia para aplicar ao inimigo, não para nós. – Tapio interveio.
-É melhor assim, eu e Tapio vamos atrás de Brita... Lahja e Ukko podem cuidar de Ensio.
-Não, Louhi. – Ukko falou batendo de leve com a bengala no ombro dela. -Você e Lahja vão até Ensio, eu e Tapio cuidaremos de Brita.
-Você quer que nós...
-Quero que vejam a queda do que vocês são. – Ukko falou chamando Tapio com um gesto.
-Eu vou servir de guardiã para você por enquanto, Louhi. – Lahja falou segurando a mão da outra, por algum motivo a mulher sentiu um desconforto. Louhi e Tapio pareciam ter-se acostumado a conviver com a idéia de que um dia um mataria o outro.
-Como se você precisasse de algo além de mim... – Aku resmungou.
-Não é comigo que eu estou preocupada, Lahja.
-Perdão?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Elo

6
-Louhi, quanto tempo você vai levar pra quebrar essa barreira? – Ukko perguntou com um relógio em punho, mais de meia hora havia passado.
-Se você ficar quieto menos tempo! – ela gritou de volta.
Aku se tornara uma espada, uma espada maciça e pesada que com o passar do tempo ficava ainda mais pesada, só podia usar Aku e sua tarefa não era nada simples. Ela nunca vira nenhum alvo quebrar uma barreira que Tapio fizera, apesar de saber que era possível por Ukko já tê-la quebrado, parecia que estava tentando empurrar uma montanha, inútil e frustrante. O enorme simbolo triangular brilhava na sua cara, alguns metros depois dele estava Tapio numa pose concentrada com as mãos para frente como quem empurra de volta, faíscas saíam de onde Aku tocava no simbolo.
-Tapio, quando tempo você acha que consegue segurar?
-Mais do que ela consegue empurrar, mestre. – Tapio respondeu sem desviar os olhos, naqueles momentos Tapio lembrava de que pelo menos em algumas coisas era melhor que Louhi, mas nunca parecia feliz com isso.
-Como eu pensei... – Ukko resmungou.
-CALEM A BOCA!
O problema não foi ela gritar, Tapio se assustou quando ela puxou a espada para trás e acertou de uma vez a barreira, não foi uma faísca, foi uma explosão e depois disso ela vôou para trás. Não viu muita coisa por um tempo, Louhi logo entendeu que fora uma má idéia, depois voltou o bailar das copas das árvores, o som bonito do vento e o toque gentil por cima de suas ataduras, as calças e blusas sumiram dando lugar a tradicional saia com blusinha, levou a mão até a coisa que causara a explosão, mas não havia nada no prendedor.
-Aku? – murmurou tateando ao redor, se sentou procurando com os olhos ainda meio vacilantes diante da luz. – Tapio você viu aonde...? – não havia ninguém ao redor, apenas árvores.
-Você quer me matar?
-Ahn? – quando virou para trás viu um homem esguio, tinha correntes saindo de seus brincos e se prendendo em algum lugar atrás de sua cabeça, provavelmente em algo que prendia seus enormes cabelos negros. –Não... Que eu saiba, não.
-Nunca mais me jogue daquele jeito em uma barreira. – ele se agachou perto dela, usava uma coleira no pescoço com espinhos, um terno estranho e comprido e haviam correntes aqui e acolá, penduradas saindo de bolsos e em suas calças fazendo curvas sobre suas pernas. – Eu poderia ter morrido.
-Aku?
-Não, o coelho da páscoa. – o homem respondeu torcendo os lábios numa careta, seus olhos eram avermelhados e pareciam ainda mais com os cabelos negros que escapavam para frente de seu rosto.
-Eu devo ter batido a cabeça... – Louhi falou tateando a própria nuca, sentia uma dor leve e algo puxando sua mente pra fora do corpo.
-Eu bato ela de novo se você não me levar a sério! – ele falou a puxando pelos braços, nunca achou que alguém podia fazer isso tão fácil com ela.
-Eu gostava mais de você quando você era um pedaço de metal mudo. – ela comentou, sabia bem o que ele era, mas preferia ignorar.
-Isso é problema seu. – ele falou a levantando, incrivel como conseguia fazer aquilo sendo tão magro. – Que tal aprender a me usar direito?
-Não, obrigada. – aqueles olhos vermelhos a incomodavam.
-Escuta, você também não é meu tipo, mas você é minha dona. Então é melhor nós chegarmos a algum tipo de acordo de mútuo benefício ou vamos matar um ao outro.
Aquilo era verdade, muitas vezes ela ficava exausta e com vontade de dormir pra sempre depois de usar Aku, e mais de uma vez Tapio a mandou ter cuidado ou quebraria o cilindro em dois e não teria conserto. Estendeu a mão para um aperto de temos um acordo, mas tudo que Aku fez foi lhe dar as costas e fazer um sinal com a mão para que o seguisse, que ela relutantemente obedeceu. Aquele lugar parecia muito com a floresta perto da casa de Ukko, mas era mais silêncioso e tranquilo.
-Aonde você está me levando...? – ela perguntou depois de algum tempo.
-Eu preciso de um círculo, estou a levando para um. – ele respondeu.
-Círculo?
-Os selos mais poderosos são feitos sobre bases circulares, como as contas nos pulsos e pescoço de seu amigo... Assim como elos, são formados através de circulos unidos. Selos são a ligação entre a energia e o material. Círculos, elos.
-E pra que nós precisamos de um elo? – ela perguntou ao chegar numa clareira com um circulo de pedras.
-Eu preciso de uma ligação mais forte com você. – ela começou a achar aquilo uma má idéia, Aku parecia um daqueles caras sinistros que moram em mansões empoeiradas e fazem altares obssessivos. – Assim você vai poder me ouvir fora daqui...
-Ouvir não quer dizer que eu vou fazer o que você fala, o Ukko tenta isso há anos.
-É, mas no meu caso você vai sentir bem mais dor se não me ouvir. – ele se virou com um sorriso maldoso – Sabe, eu só a acho aceitávelmente atraente quando você faz aquelas caretas de dor.
-Que encantador... – ela resmungou se aproximando do círculo.
-É, são um dos poucos momentos que você parece humana. Em todos os outros, você realmente não é meu tipo...
Ela não fazia idéia do que ele estava fazendo e nem queria perguntar, o viu marcar com um pedaço solto de corrente todas as pedras, alguns selos ela reconhecia, outros era como linguagem morta, provavelmente ninguém iria conhecer. Ficou esperando sentada no centro, mas o tempo se arrastava, acabou dormindo deitada no chão, com sorte iria acordar perto de pessoas menos anormais que Aku, que sequer uma pessoa era. Mas isso não aconteceu, acordou ao ouvir um clique e sentir algo gelado em seu pulso direito, levantou o braço ainda deitada fazendo tilintar a corrente presa ao seu pulso.
-Desculpe, a acordei? – Aku perguntou a puxando para ficar de pé pela corrente que estava presa no braço esquerdo dele.
-Eu não sou muito chegada nessas coisas... – Louhi comentou balançado a corrente com um chacoalhar do braço.
-A partir de hoje é. – ele falou a puxando mais para perto. – Me dê sua mão.
-Qual delas?
-A da corrente, claro.
-Aí... – ela resmungou quando ele a cortou com um tipo de adaga que veio não se sabe da onde, depois cortou a própria mão. – Que é isso, um pacto?
-Quase. – ele falou apertando a mão dela com a sua, ardia e incomodava um pouco. – Você nunca vai me usar direito enquanto eu não for parte de você... E você parte de mim.
-Conheço essa história.
Depois de um tempo os cortes pararam de sangrar, sentia um frio metálico estranho se alastrando por sua mão, depois o braço, sentiu um pouco de frio por um tempo e Aku a puxou para perto a abraçando. Ele sussurrou algo no ouvido dela, mas ela não entendeu bem, só ouviu o tilintar das correntes enquanto caía nos braços dele que sorria, os olhos vermelhos brilhando. Sentiu vontade de estripá-lo por algum motivo, algo a irritou enquanto era colocada no chão com mãos tão leves, era como se ele não tivesse o direito de ter mãos leves ou sorrir.
-Chame meu nome... – ele murmurou aproximando o rosto do dela, aproximou os lábios como se quisesse engolir a palavra.
-Aku...
-Boa garota. Agora só falta nos reconhecer...
-Louhi! – aquela voz era diferente, mais gentil e morna. Aquelas mãos também, conhecia aquele toque. – Louhi...
-Saí de cima eu não consigo respirar. – Louhi mandou empurrando Tapio com os braços, ouviu o tilintar, olhou estranhamente para a corrente no seu braço direito presa no pulso.
-Quando você saiu voando, Aku virou uma corrente e a manteve presa numa árvore. Ainda bem, ou teria ido parar sabe-se lá aonde... – Tapio falou a ajudando a levantar.
-Eu quebrei a barreira?
-Não. – Ukko falou acertando a cabeça dela com a bengala – E foi algo muito idiota, você sabe que a colisão rápida entre Aku e esse tipo de barreiras podia destruí-lo!
-Já ouvi isso antes... – Louhi comentou puxando a corrente, o cilindro estava preso à ponta, o puxou o guardando na coxa. – Acabamos por hoje?
-Tapio sim. – Ukko falou olhando feio – Você vai ter que transformar Aku em 100 armas diferentes antes de voltar para casa. Não seja tão irresponsável, Louhi. Controle deve ser a base de tudo que você faz!
-100 armas ou 100 objetos que podem ser usados para matar?
-Armas!
-Só pra confirmar.
Tapio se afastou com Ukko enquanto ela puxava o cilindro, em poucos segundos ele virou uma adaga, espada, manopla, clave, mangual e lança. Quando o jovem olhou para trás tudo que via eram armas se transformando muito mais rápido do que podia lembrar que Louhi as criava, Ukko andava sorrindo aparentemente muito feliz consigo mesmo. Mais tarde ficaria sabendo que finalmente Aku podia ser considerada a arma de Louhi, mas por enquanto só estava surpreso. Não podia reconhecer naquele momento, mas o sorriso de Ukko, também tinha um ar de preocupação.
-Nada mal. – Louhi ouviu a voz fria dentro de sua cabeça. – Como você se sente?
-Meu pulso dói, sua voz irrita meus ouvidos e meus olhos ainda estão ardendo por algum motivo. Fora isso me sinto ótima.
-Só não vá se apaixonar por mim, já disse que não é meu tipo.
-Não precisa se preocupar, Aku. Minha única intenção é usá-lo como um objeto.
-Ótimo, pois eu só pretendo drenar sua vida, até você não aguentar mais. – ele respondeu aparentemente feliz. – Nós vamos acabar chegando a um acordo...
-Por que uma corrente?
-Eu gosto de correntes. – ele respondeu. – Tenho uma para cada selo que me formou. E além disso, vai me impedir de sair voando quando te acertarem, sua desastrada.
-Pode ser útil... – ela comentou deixando o revolver cair e o puxando de volta pela corrente.
-Quantas faltam?
-67... Você não gosta de correntes de verdade...
-Fácil. – ele pareceu rir – Você não aguentaria o que eu gosto ou desgosto.
Mesmo depois de acabada a tarefa não fez o caminho de volta, Louhi sentia um arrepio frio subindo sua coluna, a corrente pesando em seu puso, ligada à Aku preso no suporte em sua perna. O vento não a acalentava, podia sentir os dedos finos dele entre os seus, o toque leve e gélido como um anjo da morte a puxando para onde a luz da lua não bate mais. Era estranho, geralmente aquele tipo de tarefa a exauria, mas agora se sentia examente como quando começara, completa.
-Algo a incomoda, mestra? – Aku perguntou em tom de escárnio e zombaria.
-Por que eu não estou cansada?
-Agora somos parte um do outro, algo tão fútil e infantil não me cansaria. Agora eu posso ir bem mais fundo...
-Fundo?
-Antes eu retirava energia da superficie, por isso você ficava cansada tão rápido. Agora eu posso retirar energia de lugares mais profundos dentro de você, energia que você não usa.
-Está frio...
-Você vai se acostumar. Em breve...
-Você não gosta de correntes de verdade, você só está preso. Um selo para cada corrente, ou uma corrente para cada selo...
-Então você já entendeu?
-Queria saber como conseguiram trancar você nessa barrinha de metal.
-Foi lento e doloroso.
-Eu imagino.
-Imagina?
-Do ponto de vista da barra. – ela respondeu com um breve sorriso sem emoção. – Aku...
-Calma. Em breve, mestra...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Depois da meia noite

Depois de deitar na cama,
Cobrindo o rosto com o lençol.
Depois de dormir séculos,
Mergulho em álcool e formol.


Não adianta embriagar mágoas,
Nem tentar desconstruir a solidão.
Seu rosto nunca mais vai ser,
Aquela imagem sem perdão.


Olhos vermelhos, lábios roxos.
Depois do último sino, toca-se
O último reflexo do ontem.
Depois da meia noite, nota-se...


As unhas cravadas no travesseiro,
Os lábios abertos soprando frio.
Depois da meia noite, veja pela janela
A última imagem de um corpo esguio.


Caindo como flutua,
Tocando como quem esquiva.
Escondendo, como nua
Imagem de um ídolo à deriva.


Deite-se, feche os olhos vermelhos,
Depois da meia noite, entre lençóis e espelhos.
Toca-se, nota-se... O que o dia não suporta.

Castigo

5
Tapio estava sentado à sombra de uma árvore, com um sorriso de quem acha graça e olhar atento, mantinha as mãos unidas como em prece, mas se concentrava mais no que ela fazia do que no que estava fazendo. Ukko mesmo não sendo mais oficialmente um professor, não deixara sua posição de mestre e ainda pegava no pé deles. Especialmente no de Louhi, especialmente quando ela exagerava, ele ficara sabendo do troll e os colocou em uma semana de treinamento como castigo. Ele sempre advertira, ela não podia passar dos limites, era perigoso demais.
-Por que ele só fica sentado enquanto eu estou aqui? – Louhi perguntou de ponta cabeça num galho de árvore, algumas abdominais depois das flexões e corrida era o aquecimento chato que ela tinha.
-Porque o trabalho dele é muito mais mental que físico. – Ukko falou dando uma batida nas costas delas com a bengala para incentivá-la a fazer a próxima abdominal.
-Corpo são, mente sã. – ela resmungou.
-Não há nada de errado com o corpo de Tapio, ele tem mais disciplina que você. Acabe logo essas abdominais, você tem que treinar 2 horas antes do almoço!
-Sim, mestre!
Treinamento era uma das raras ocasiões onde era possivel ver Louhi coberta por panos, Ukko a fazia usar casaco e calças compridas, Tapio nunca entendeu bem o porque, mas era sempre assim. Depois de acabar a rodada de exercicios era a vez dele ajudar, foi até uma árvore e desenhou um simbolo que lembrava um cubo se quebrando, encostou as duas mãos no tronco e fechou os olhos. Sacerdotes podiam lacrar ou liberar energia, armas como Aku e Ale só podiam ser feitas por sacerdotes experientes, para manter esse poder por muito tempo. Os selos que Louhi usava eram feitos por Tapio, mas depois de uso se tornavam cinzas.
-Ótimo, um Ent do inferno... – Louhi falou enfiando a mão no bolso, a árvore ganhara vida e começara a se contorcer.
-Não. Você está proibida de usar a Aku até depois do almoço.
-Velho maldito...
-Você precisa guardar suas forças, Aku não é um brinquedo. – Ukko falou dando as costas e indo na direção da casa – Mais um a cada cinco minutos, Tapio.
-Sim, mestre. – Tapio falou se protegendo com um selo enquanto a árvore desengonçada e retorcida ia pra cima de Louhi.
-Barreira feita?
-Claro.
-Primeiro selo, pronto...
Louhi não era como Tapio, ela tinha uma confirmação verbal própria para o que fazia ou acontecia, como se sem aquilo a realidade fosse se dissolver e tudo seria mera ilusão. Desviar de galhos saindo de galhos, que sairam de outros galhos sem dúvida não é fácil, mas a quantidade enorme de árvores por ali servia de escudo vez e outra. Por isso viviam naquele lugar isolado, assim ninguém incomodava ou se machucava. As marcas nos pulsos de Louhi mesclavam cicatrizes a tuatuagens, as vezes pareciam saltar aos olhos como veias, especialmente quando ela fazia aquilo... Pular na direção de algo e o segurar com força.
-Madeira! – ela gritou arremessando a árvore.
-Vai ter que fazer melhor que isso, Louhi. Ela ainda está mexendo.
-Não diga. – a garota falou puxando o capuz por cima da cabeça, contou antes de sair correndo. – Um, dois, três...
Tapio se sentia preocupado, às vezes, mas assistir Louhi se escondendo e se movendo sem fazer barulho, caçando e exterminando sempre era um entretenimento garantido. Ele a única pessoa na platéia, o único a fazer expressões de surpresa, susto, alivio, ou saudá-la no final. O único a ver depois que a cortina fecha, o estado enfraquecido, exausto e vazio do que resta de uma atriz que deixa sair o personagem. O tempo passava mais rápido do que ele esperava, faltavam poucos minutos para a pausa do almoço, duas árvores arremessavam Louhi de um lado para o outro, chicotadas de madeira e cortes de folhas.
-Terceiro selo, pronto. Alvo... – Louhi murmurou cravando as mãos no tronco de uma das árvores, se fixou como um parasita. – Eliminado!
-Você só tem dois minutos, Louhi!
Tapio avisou vendo a árvore ser aberta em duas, Louhi parecia cansada e os ferimentos abertos davam a ela a aparência de um animal selvagem num duelo, o peito arfando e os dentes à mostra, os olhos fixos na presa abatida. Tapio sentiu um leve receio quando a outra árvore a capturou com os galhos a mantendo presa contra o tronco, se apertasse o bastante não era díficil para uma árvore quebrar uma pessoa em vários pedacinhos. Louhi não gritou, apesar das caretas, ele preferia que ela tivesse gritado do que ver poucas lágrimas rolarem enquanto ela apertava os punhos.
-Louhi... – Tapio estava pensando em fazer alguma coisa quando um objeto maciço o acertou na cabeça. – Mestre Ukko...
-Se ela não aguenta isso, já está morta... – Ukko falou olhando para a árvore – Você sabe disso...
-Mas mestre já fazem mais de duas horas... – Tapio comentou.
-Você está enxergando, mas não está vendo a situação Tapio. Para um Guardião, bem mais que solucionar uma situação é preciso vê-la e entendê-la. Se você não entende, você não pode fazer nada.
-Claro, mestre. – ele falou olhando para Louhi e a árvore.
-Essa menina é mesmo impressionante. Em três tempos. Marcar, aproximar e por fim eliminar. – Ukko sorriu.
-Mas o que...? – Tapio não acreditava em seus olhos, Louhi tinha quebrado os galhos que as esmagavam e acabara de começar a quebrar a árvore com chutes. – Eu...
-Não precisa se sentir inútil, Tapio, você tem o seu papel. – Ukko falou vendo a árvore ir ao chão, a touca do agasalho caiu, revelando cabeços bagunçados e uma marca que dava a volta no pescoço como uma coleira, aos poucos sumindo. – Também não precisa se sentir fraco, você não é fraco...
-Só não sou um monstro. Ela me falou isso...
-Vá cuidar dos ferimentos dela e comam bem, depois vamos continuar. – Ukko mandou deixando uma cesta com comida aos pés do jovem. – E não se esqueça, você tem o seu papel... Não importa quantos monstros ela possa subjulgar, lembre-se que só você pode fazer o mesmo com ela.
-Sim, mestre.
Louhi estava físicamente quieta, se jogara sob a sombra de uma árvore e não mexera sequer um dedo depois disso, mas não parava de fazer onomatopéias fracas de dor enquanto ele limpava seus cortes e tratava seus ferimentos. Em algumas horas eles deveriam fechar com um pouco de ajuda de seus selos, mas ainda assim antes disso ela já estaria se mexendo de novo. A pele gelada dava a impressão de estar cuidando de um cadaver, mas podia ver o movimento sutil da respiração dela e os olhos cinzas olhando para o vento na copa da árvore. Não se lembrava bem, mas parecia que era só em momentos assim que ela parecia humana.
-Quanto mais selos você usar mais rápido você acaba com os inimigos, mas isso não é de graça. – Tapio comentou puxando o braço dela, havia marcas vermelhas ao redor dos pulsos. – Depois o seu corpo recebe os sinais e consequências do esforço.
-Não diga. – ela murmurou fazendo uma careta quando ele apertou seu pulso. – Não faz isso...
-Eu preciso enfaixar. – ele falou apertando de novo com as ataduras.
-Tanto tempo caçando coisas insignificantes, eu acabei esquecendo como eu me sinto depois de esforço de verdade. – ela comentou virando o rosto e fechando os olhos.
-Fala como se árvores fossem lordes demôniacos. – Tapio comentou, mas sabia que não era fácil.
-Árvores também são insignificantes, mas uma floresta é bem problemática.
Ela simulou um sorriso, os dois se alimentaram quietos na sombra da árvore, imaginando o que Ukko iria inventar para as horas seguintes. Uma cena um tanto quanto nostálgica, ela lembrava bem da primeira aula que tiveram juntos, as duplas tinham sido feitas rápidamentes e os dois sobraram, um garotinho de olhar tímido e ela que fingia que dormia de tédio afastada do resto da turma. Na primeira aula eles tinham que simplesmente fazer exatamente aquilo, ele dava vida à algo para ela tirar, mas na época eram coisas bem menores e mais inofensivas.
-Você acha que alguma coisa mudou nos últimos anos, Louhi?
-Acho, sua cabeça ficou maior. – ela respondeu tomando longos goles de água.
-Não é disso que eu estou falando. Nós ainda fazemos quase as mesmas coisas, Ukko ainda nos castiga dos mesmos jeitos e...
-Você ainda pensa demais. – ela falou sorrindo.
-Eu só imagino que talvez você viva entediada. – ele comentou.
-Eu não ficava entediada de verdade. Eu só... – ela bateu com a garrafa na cabeça dele de leve – Não é da sua conta...
-Sabe, como seu guardião você devia confiar mais em mim... – ele murmurou.
-As pessoas nem sempre fazem o que deviam.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Aku

4
-Proteger... – Tapio murmurou, triângulos cercando ele e Louhi. – Me explique de novo como viemos parar aqui?
-Troll grande e feio destruindo a fazenda... – Louhi murmurou abaixando o revolver, só estava desperdiçando esforço ao atirar naquela coisa.
-Alguma idéia de quando ele vai parar de atirar coisas em nós?
-Nenhuma... – Louhi soltou um suspiro, havia pedaços de cerca e árvores voando na direção deles, colidiam com os triangulos de luz e se partiam em vários pedaços. – Odeio trolls, eles são muito fortes e tem a pele muito dura...
-Quando éramos crianças você odiava muito menos. – Tapio comentou sorrindo.
-Quando éramos crianças eu estava mais ocupada odiando você. – Ela falou sorrindo de volta. – Primeiro selo pronto... Alvo marcado.
-Você não vai conseguir matar ele com isso. – Tapio interveio olhando a faca que se materializara na mão dela.
-A menos que eu vá para trás dele e o acerte na nuca. – Louhi corrigiu.
-Dificil com objetos voando e um troll maluco girando para todos os lados, atacando o nada, Louhi. Você precisaria ser bem mais rápida...
-Não diga.
O que ele podia fazer? Nada. Afinal ela era a assassina, mesmo quando corria e se jogava, quase não fazia barulho o ideal para não ser notada, mas agora era tarde, depois de começar a atirar no troll ele os notara muito bem. A criatura enorme de braços do tamanho de troncos continuava arremessando coisas, agora no pontinho que corria em sua direção. As marcas nos pulsos, a faca ligeiramente grande ou não faria sentido, as botas afundando no chão enquanto corriam e saltavam. Se sentia inútil e nessas horas é que tinha mais motivos para fazer algo.
-Luz... – Tapio murmurou fazendo pontos de luz surgirem por todos os lados, o troll cobriu a cara socando a iluminação.
-Aaaaaaarg!
-Só um pulinho... – Louhi murmurou.
Um pulinho era sua versão de escalar as costas de um troll de quase três metros, saltando por suas pernas e coluna, felizmente trolls não são conhecidos por sua boa postura deixando tudo mais fácil. Não teria conseguido sem Taipo, talvez, mas a verdade é que de qualquer jeito ela teria chegado lá e cravado a faca na nuca do Troll com as duas mãos o fazendo cair de cara no chão. Porque era isso que ela fazia, era isso que fazia de melhor. Puxou a faca de volta e depois limpou o suor do rosto, ao mesmo tempo a arma se tornava um cilindro novamente. De qualquer jeito...
-Segundo selo. Alvo morto. – ela sussurrou, marcas em seus pulsos, mas Taipo sabia que não era só lá que havia algo marcado.
-Louhi, ele te acertou? – Taipo perguntou enquanto se aproximava correndo.
-Não. Ele tem uma mira péssima!
-LOUHI!
Ela ainda estava de pé nas costas do troll quando ele saltou de pé mais uma vez, Tapio gritou pois o viu se mexer primeiro. Louhi caiu pra trás de costas, indo aterrissar no chão de maneira muito dolorosa, Tapio ia invocar um de seus selos, mas talvez não desse tempo. O monstro arremessava coisas mais rápido do que Tapio se protegia delas. Por sorte ele era burro, burro o bastante para dar as costas para a real ameaça, ou pelo menos não se incomodar com a real ameaça nas suas costas. Olhos azuis pálidos, quase cinzas como o que restava de seus alvos, olhos que pareciam reflexos de luz em meio as sombras. De qualquer jeito ele os matava.
-Mexe com alguém do seu tamanho. – Louhi mandou.
Tapio não estava acostumado a ver Louhi usar armas tão grandes, tudo que viu foi a enorme explosão e o troll caindo de novo, dessa vez em pedaços, quando a fumaça e a bagunça baixaram conseguiu ver Louhi meio deitada e meio sentada no chão, uma enorme bazuca em seus braços com fumaça saindo da ponta, o fim apoiado na terra a deixava naquela posição. Os olhos estreitos quando um predador diz para sua presa que a vida dela já era.
-Você não precisava usar uma bazuca. – Tapio murmurou para a garota que se deixou cair deitada, a bazuca de volta na forma de cilindro que cabia no suporte em sua coxa.
-Era mais rápido. – ela falou puxando a saia para guardar sua arma.
-Estava preocupada comigo? – ele perguntou se abaixando, o rosto gentil.
-Você é bem grandinho, pode se cuidar sozinho... – as marcas nos pulsos dela desapareceram.
-Faz tanto tempo que eu não vejo o Aku! – uma voz exclamou animada – Meu pobre, Ale, morre de inveja.
Louhi só virou o rosto para o lado, ao contrário de Tapio que não estava exausto ao ponto de não conseguir se virar para olhar melhor. Era Lahja, uma mulher ruiva de longos cabelos lisos que iam quase até seus tornozelos, sempre usava o mesmo tipo de vestido longo cuja saía voava com o vento dando um efeito cinematográfico em suas aparições. Lahja era a garota perfeitinha, educada de olhos amarelados gentis, a primeira aluna dos antigos mestres. A única que não tinha um par, ela era mais antiga que isso, apesar de ser poucos anos mais velha que eles.
-Para de encarar minha arma. – Louhi mandou relaxando um pouco, se era Lahja não precisava se preocupar.
-Você é mesmo diferente, não gosta que eu olhe para Aku, mas não liga de ficar levantando a saia na frente dos outros. – Lahja comentou dando risada.
-O que está fazendo aqui, Lahja? – Taipo perguntou objetivamente.
-Ale me disse que vocês estavam por perto, decidi vir dar uma olhada. – ela falou esticando um pequeno cetro com um circulo no topo, no centro do circulo ficava preso por pequenos fios um selo de metal, por todo cetro selos, como haviam no cilindro de metal de Louhi.
-Essa coisa fala? – Louhi perguntou.
-Coisa? Você não aprendeu nada sobre esses artefatos, não é? – Lahja murmurou de maneira triste – Artefatos como Ale e Aku, não são como simples armas ou objetos humanos.
-Você sabe que ela prefere fingir que Aku é só um pedaço de metal. – Tapio interveio antes que Lahja começasse uma aula sobre artefatos mágicos.
-Pelo visto a ligação entre vocês ainda é fraca, ou então Aku não gosta de você, por isso não se comunicam. – Lahja murmurou – De qualquer forma o que é esse monte de pedaços de troll espalhados por todo lado?
-A Louhi usou uma bazuca...
-Uma bazuca? – Lahja parecia chocada – Contra um troll?
-É. – Louhi confirmou.
-Isso é como matar uma mosca com um lança chamas, você não devia desperdiçar tanta energia, Louhi! Agora entendo porque você está tão quieta.
Aku não era só um cilindro que se tornava a arma que sua portadora achasse melhor, Aku era um artefato mágico que continha todos os selos sacerdotais. Esse tipo de artefato é uma arma poderosa e perigosa, ao mesmo tempo que ajuda seu portador suga a energia dele para funcionar, tal troca cria uma ligação entre artefato e portador. Geralmente quando a ligação está forte o bastante o artefato se torna como um aliado, o portador se torna seu mestre e um ajuda a existência do outro. Mas no caso de Aku, tudo que fazia era se tornar armas, nada de comunicação, nada de mestre.
-Você precisa se cuidar, Louhi... – Lahja comentou se sentando sobre os joelhos para olhar a outra mais de perto. – Se você usar algo além de sua capacidade, você vai ficar sem energia alguma e cair morta... Ou pior!
-Ela sabe disso, Lahja. – Tapio falou olhando para o céu – A culpa foi minha.
-Sua? Como?
-Ela ficou preocupada que o troll fosse acertar uma árvore na minha cabeça.
-É mesmo? Você é tão atenciosa, Louhi, mas mesmo assim não pode se descuidar. Foi algo muito nobre, mas...
-Lahja. Não foi nada disso, o Tapio que é egocêntrico e acha que tudo é sobre ele.
Houve um silêncio desconfortável, até que Lahja deu risada, era como se fossem crianças de novo e no meio de um exercicio ela os visse treinando longe. Lahja ainda lembrava dos dois quando pequenos, Tapio sempre tentando proteger Louhi e acabando sendo salvo por ela, que fingia que não tinha feito nada por ele. Podia entender os dois, por ser como os dois, mas sentia uma empatia especial por Louhi. Batalhas contra si próprio sempre são as mais preocupantes.
-Eu tenho que ir, preciso exorcizar uma senhora na cidade vizinha. – Lahja falou se levantando.
-Tentar você quer dizer... – Louhi corrigiu, se sentou com uma certa lerdeza, seu corpo estava pesado. – Exorcismo é uma ficção.
-Eu só espero poder lacrar o demônio e deixá-la voltar a sua vida normal. – Lahja falou com o olhar distante – Mesmo que aquilo fique preso dentro dela para sempre, não iria incomodá-la ou usá-la.
-Boa sorte. Se o corpo dela não aguentar você sabe o que acontece... – otimismo não era exatamente parte dos hábitos da garota.
-Eu tenho fé nas pessoas. – a mulher respondeu sorrindo – Eu sei que, todas têm pelo menos a chance de lutar contra seus próprios demônios. Eu sei que elas tem o potencial...
-E quando todas elas o usarem ao invés de esperarem os outros resolverem seus problemas, o mundo vai ser um lugar mais justo e iluminado. – Louhi falou sorrindo, mas não parecia feliz, também não parecia deboche – Acredite nisso por nós duas, Lahja.
-Claro. Cuide dela, Tapio. A mantenha longe das bazucas!
-Sim, senhora. – Tapio falou vendo Lahja partir, tão rápido quanto chegou.
Ficou olhando para Louhi sentada, os joelhos dobrados para o lado, os olhos às vezes no chão e às vezes no céu, parecia procurar alguma coisa. Todo o sentido da vida dela era matar demônios, mas odiava o fato de precisarem dela para fazer isso, de alguma forma aquilo era um jeito de odiar a si mesma e deixava Tapio preocupado com ela. Preocupado que talvez o mundo ideal de Louhi, fosse um mundo sem ela, ou até mesmo ele, visto que um mundo aonde não se precisa de assassinos de demônios, eles sequer existiriam.
-Casa? – Tapio sugeriu.
-Eu não consigo andar ainda... – Louhi falou mexendo debilmente as pernas.
-Pode deixar que eu te levo... – ele virou de costas pra ela – Vem...
-Sabe de uma coisa Tapio? – ela perguntou enquanto ele a levantava e começava a andar.
-O que?
-Se nós caçassemos coelhinhos, filhotes de cachorro, ou algo assim... Eu acho que talvez você não fosse um fracote. – Louhi falou sorrindo.
-É, eu seria o terror das nossas presas. – ele comentou de maneira sarcástica, não se sentia ofendido, mas... – Que conversa é essa?
-Só estava pensando que você não é fraco. – Louhi falou o segurando mais forte – Você só não é um monstro.