quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Estalo mental

2
Soner passou o dia inteiro fora, ela entendia, tinha que buscar o alvo de sua instrução, mas o que não entendia era porque Will se prendera em casa com um olhar fixo num ponto morto da parede. Ela ficava aflita, não sabia exatamente o que estava acontecendo, então olhava para todos os cantos em busca de alguma luz, mas a única luz que ganhava eram raios de sol que machucavam seus olhos. Que tipo de pessoa os chefes mandaram? Que tipo de desejo os fizeram escolher mais alguém depois de tanto tempo.
-Entendeu? – Soner perguntava de maneira séria.
-Sim, só escolher uma pessoa por vez e esperar ela morrer antes de escolher outra. – era uma voz de menina, uma voz de criança, uma voz... Ele não sabia explicar, talvez fosse inocência, ou talvez fosse ignorância.
-Isso mesmo, como você escolhe a pessoa fica por sua conta. Mas...
-Ela tem que ser uma pessoa boa. – completou antes do instrutor dizer, aprendia rápido, seu mundo se tornara rápido. Como ele era antes? Não lembrava. – Instrutor...
-Pode me chamar de Soner. – ele falou dando um tapinha de leve na cabeça dela, como se fosse um cachorro.
-Soner. Não tem limite pra que tipo de desejo eu posso realizar? – ela perguntou, imaginava que pessoas boas não pediriam nada estranho ou impossivel, mas ainda assim, era muito ampla a pergunta: qual seu desejo?
-Alguns, nós temos regras... Mas falamos disso depois, vou te apresentar pros donos da casa antes. – Soner falou a empurrando portão adentro pelas costas.
-Está bem!
Ela parecia bem animada, realmente como uma criança. Não entendia como alguém tão nova podia ter sido escolhida, mas já que aconteceu tinha que lidar com aquilo, a sala estava silênciosa, apesar da presença senhorial de Will sentado no sofá com os braços no encosto, apesar de Beg recostada num canto olhando pela janela. Silêncio sepulcral que só era quebrado pelos passos barulhentos da recém chegada e seu instrutor.
-Soner... essa é...? – Beg ficou olhando com rosto abestalhado.
-Munya, muito prazer. – ela se apresentou fazendo uma mesura, usava um vestido preto com rendas.
-Munya, é? – Will falou se levantando e olhando para a garota – O que é isso, mistura de mugido com descontentamento?
-Ora seu... – a tempora dela ficou em evidência, a animação virou irritação.
-Seja bem vinda, Munya. É esse mesmo seu nome? – Beg perguntou, chegou mais perto para analisar, sabia que ele também tinha notado.
Apesar de agora estarem presos em longas tranças os cabelos eram os mesmos, o mesmo perfume das flores do caixão, aqueles olhos claros, azuis limpidos e lacrimais também eram os mesmos. Aleijado, de fato não era um nome que condizia com o que ela se tornara, por isso outro nome, Desejo. Mas será que ela não lembrava? Muitos demoravam para lembrar, muitos só lembravam de alguma coisa, outros jamais lembravam do que eram antes de morrer e se tornarem, bem, aquilo.
-Sim. – ela respondeu com um sorriso.
-Muito prazer! – Beg falou abraçando a menina que emitiu uma exclamação, podia se perder nas curvas dela, e era quente e estranho, mulher loira assustadora. – Sinta-se em casa, anjo!
-Como assim sinta-se em casa? Ela devia trabalhar meio periodo como empregada pra pagar a estadia... – Will comentou acidamente.
-Empregada!?
-Não dê ouvidos pra ele, Munya. Ele só gosta de ser desagradavel... – Beg falou a puxando pela mão, tinha o toque leve. – Venha vou mostrar seu quarto!
-Não vai não. – Will interrompeu.
-O que foi agora, Will? – Soner perguntou, seu rosto sério que até agora apenas observava demonstrava a intenção de intervir se fosse necessário. – Algo contra minha aluna?
-Não, deixa que eu cuido do anjinho...
Por que de repente ela tinha medo? O olhar sério de Soner parecia meramente formal, mas aqueles olhos negros num sorriso a amedrontaram! Will devia ser o diabo, ele parecia o diabo, aqueles cabelos brancos saídos de algum mago maligno da era medieval a deixavam apreensiva. Soner contara para ela que ia morar com outros como eles, irmãos, uma era gentil e divertida, mas o outro era um pirralho insuportável, mas ambos eram experientes e podiam ensinar muito a ela. Se fosse daquele cara com olhar de demônio, sorriso malicioso, não queria aprender!
-Eu não preciso de cuidados, obrigada! É só apontar a direção... – ela falou dando alguns passos na direção da escada.
-Apontar? – Will repetiu em forma de pergunta, a pegou no colo depois esticou o indicador escada acima – Primeiro você sobe...
-Ei! Me poe no chão!
-Não se preocupe, você é tamanho infantil não pesa nenhum pouco. – ele falou subindo as escadas, lá embaixo Beg dava risada e Soner apenas observava com seu tipico rosto sério que nada demonstra.
-Não é isso! Eu sei andar! – ela falou esperneando.
-Não, você sabe bater os pés, é muito diferente. – Will comentou e então indicou com a cabeça a esquerda. – A primeira porta é o quarto da Beg, não entre lá de manhã a menos que queira se assustar.
-Isso não é muito gentil sabia? – Munya reclamou.
-Não é minha culpa se a verdade não é gentil, anjinho... – ele falou chutando a segunda porta para que abrisse. – Esse vai ser seu quarto, muito tempo atrás uma outra garota ficava aqui.
-Garota? – Munya perguntou, curiosidade infantil em seus olhos, era mesmo tamanho infantil, cabia como um brinquedo nos braços dele. Não tinha reparado que ele era bem maior até mesmo que Soner até aquele momento.
-Claudia. – ele falou parando de andar, ambos se encaravam por algum tempo. – Ela ficava linda quando chorava.
-Sádico! – Munya gritou.
-Essa é sua cama... – ele a soltou a deixando cair no colchão sob seus braços.
Ela se levantou para gritar com ele, mas por algum motivo a voz não saiu, ela lá estatelada, de alguma forma parecia familiar e então o grito morreu em sua garganta, como uma lembrança antiga em sua mente. Ficou olhando para ele que simplesmente olhava de volta, até que ele começou a dar risada, ela não entendeu o porque e ingenuamente perguntou se tinha acontecido alguma coisa com os olhos.
-Já ficou sem voz? – ele perguntou se inclinando na direção dela – Eu costumo ter esse efeito em mulheres, mas não tão rápido...
-Cala a boca! – ela falou jogando o travesseiro nele, algo em sua cabeça estalou.
-É... – ele foi interrompido.
-Munya. – Era Soner na porta do quarto.
-Eu! – ela falou levantando com um pulo e indo na direção dele com um sorriso.
Will não era aquele tipo de homem, sério e próprio, adequado a situação e de poucas palavras. Não era do tipo que ao aparecer alguém ia correndo sorrindo em sua direção, provavelmente ele nunca iria ser, por isso que não gostava do namorado da irmã? Não, tinha que ter outro motivo que inveja. Um motivo que não fosse também ciúmes daqueles sorrisos cálidos que ele recebia de graça.
-Tenho lição para você... – ele falou colocando as mãos nos bolsos. – Vá achar alguém que você queira para realizar o desejo, não fale com a pessoa em hipótese alguma. Apenas encontre alguém na multidão. Está bem?
-Certo. – Munya falou fazendo sinal de positivo com a cabeça.
-Não esqueça que ela tem que ser boa! – Soner lembrou vendo a menina sair correndo pelo corredor.
-Sim, senhor!
-Will... – Soner murmurou se virando para o outro que tinha aproveitado a interrupção para deitar na cama e encarar o teto. – O que você quer com a minha aluna?
-Por que? Vai realizar meus desejos, instrutor? – o outro perguntou zombando.
-É meu trabalho cuidar dela também. – Soner falou o encarando com seriedade.
-O que eu iria querer com uma criança idiota que nem ela? – muita coisa, mas ninguém precisava saber daquilo.

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