terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Eins-Zwei-Drei!

Os móveis ainda estavam cobertor com lençóis brancos, ainda havia muito pó para ser varrido para fora, e aquela coceira no nariz de poeira já começava a aparecer. Beatrix Widerschein, apesar de sua pilha de livros e cadernos velhos, não podia ser nem de longe chamada de uma "amiga dos ambientes empoeirados". O primeiro espirro a fez correr e abrir as janelas, o vento espalhou as cortinas e também o pó, fazendo pequenos desenhos sobre as cômodas antigas, retratos mudos e cores que se desbota, curvadas pelo tempo.
-Sein gut, Beatrix?
-Sim...E...
-Was?
-Eu não sei alemão. – a garota murmurou debruçada na janela, só porque seus pais sabiam alemão, não queria dizer que ela sabia. Tudo que restava da Alemanha era seu sobrenome e pequenas lembranças de seus pais. A outra riu como quem acha que é brincadeira e começou a falar incessantemente. – Ich versteh dich nicht! Desculpe, mas...
-Eu entendi. – a mulher respondeu franzindo a testa – Bem, você é nova, pode aprender ainda.
-Eu não quero aprender.
-Bobagem! E quando voltar à Alemanha?
-Não vou voltar. Obrigada por tudo...
Toda porta que se fecha, era um lembrete do caixão sendo lacrado sobre sua cabeça, lembrava de ter espreitado para dentro da agência funerária quando criança, ainda era pequena e não entendia porque não podia dormir como seus pais. Escalou até o caixão aberto e se deitou no veludo, o perfume de rosas a fazia lembrar do jardim de sua mãe e os gritos na distãncia lembravam seus pai, as velas eram como seus olhos. Boris e Isolde só tiveram uma filha, e uma filha fora tudo que o mundo teve deles. Ainda podia lembrar do caixão fechando sobre sua cabeça, adormeceu sem medo e no dia seguinte um senhor a encontrou.
-Beatrix! – aquela voz sombria só podia ser de Melanie. – Já arrumou seu quarto?
-Quase!
A definição exata de quase queria dizer que haviam móveis sem poeira, mas de resto, caixas e roupas esparramadas, objetos empilhados e a organização tradicional passava longe daquele lugar. Um quarto com cama, armário, uma pequena mesa na janela e um enorme espelho na parede, mais nada. Passara dias apenas deitada na cama encarando o teto de maneira distraída, podia ver sombras que se moviam e borrões de sua visão dançando na tinta que descascava. Aquela casa era um lembrete triste da decadência que tudo sofria nesse mundo.
-Isso não é quase, Beatrix! – Melanie gritou abrindo a porta. – Quando você vai levantar e viver sua vida? Seus pais morreram há anos e não importa em quantos caixões você deite não chegou sua hora!
-Você é sempre tão gentil, Tante Melanie. – Beatrix murmurou com um sorriso para o teto.
-Já chega, Beatrix! – Melanie falou a puxando pelos pulsos a forçando a sentar – Você vai acabar de arrumar esse quarto hoje! E não vai comer até acabar!
Tinha algo que encantava Beatrix em Melanie, não eram os traços fortes nem os cabelos loiros presos num coque, não eram os olhos azuis frios nem a voz de abismo que ecoava pelas paredes. Não tinha nada a ver com a palidez ou frieza de seu corpo, cujo coração nada mais era que uma bomba de sangue, não, o que realmente encatava em Melanie era que apesar da aparência severa e trajeitos violentos, Beatrix nunca se sentiu menos que amada perto dela. Se não amasse não haveria motivo para tanta exaltação e gritos. Sentiu um vento subir sua espinha quando se curvou para pegar os sapatos, ergueu o rosto para encarar o espelho.
-Vento de lugar nenhum... – murmurou constatando as janelas fechadas através do espelho, seus olhos passearam da janela até a própria face, atrás de si as cortinas dançavam, mesmo sem vento, mesmo sem janela aberta para o vento passar. – Casa velha, tinha que ser mal assombrada...
Começou a esvaziar as caixas e arrumar as roupas no armário, ignorava completamente as ondas de frio e calor que passeavam pelo quarto, a lembravam de quando tinha febre. Que lembrava quando seu pai a deitava no sofá e cobria com o casaco de lobo, junto a lareira tomava chá que sua mãe fizera enquanto Boris atiçava as chamas. Mas já não havia nada para ser atiçado dentro de si, nem febre, nem chama, nem lembranças... Sentiu algo lhe puxar o pulso, mas não era Tante Melanie.
-Trugbild... – foi um sussurro.
-Fantasma... – estava de costas para o espelho, escorregando em sua superficie, sentada no chão sentia algo bater contra suas costas, uma batida ritmada que ora ou outra sentia dentro de si.
-Você é o fantasma... – a voz respondeu, recostada em algo morno. – Querendo dormir pra sempre, quer trocar?
-Trocar...?
-Venha pra esse lado e eu vou para o seu...
-Não ia dar certo.
-Não falei que era para dar certo, falei que era uma troca. – a voz riu-se, fantasma estranho sequer tentava assustar. – Me dê a mão...
-Essa mão? – tocou algo ao tatear a superficie vitrea, ainda de costas entrelaçou os dedos em algo que não sabia explicar, o quarto girou, parecia estar ao contrário, como visto através do espelho, virou o rosto para trás encarando um rosto sorridente. – Trugbild?
-Vai ser um prazer ficar com sua não vida. Divirta-se aí dentro, Beatrix...
-Aqui dentro... – socou a superficie, mas sequer uma rachadura apareceu, era tudo tão irreal e tranquilo, natural e envolvente, suas mãos pareciam as mesmas, tudo parecia o mesmo exceto o quarto.
Era tudo do avesso e do outro lado podia assistir como a uma tevê seu quarto original, sendo arrumado por uma ela mesma, mas de movimentos animados, ouviu cochichos e murmúrios e caminhou até a porta, procurando ouvir o que se passava do outro lado. Uma voz baixa resmungava maldições sobre alguém, deu passos para trás ao ouvir a maçaneta, assistiu uma Tante Melanie, de cabelos negros e olhos castanhos entrar no quarto do avesso.
-Tante Melanie?
-O que é agora? – a outra perguntou quase sem sair voz de sua garganta – Eu estou ocupada...
-Não vai mandar-me arrumar o quarto?
-Faça o que quiser, menina... O que quiser...
O encanto quebrara tão galho fino quando vem a nevasca, a voz baixa e desinteressada, a frieza transcendera seu corpo, pegou a muda de roupas que a outra trouxera e colocou sobre o colo, sentada na cama só agora notava que tudo era preto ou branco naquele lugar. Deitou na cama e voltou a olhar o teto, mas não havia nada nele, nada diferente e nada igual. Começou a contar baixinho, como criança tentando dormir e conta ovelhas para o sono alcançar, mas na verdade queria acordar, acordar de volta no quarto do lado certo.
-Eins, zwei, drei, vier, fünf, sechs, sieben, acht, neun, zehn, elf... – tampou a própria boca, não contava em alemão desde que colhia flores com sua mãe, sentiu lágrimas quentes lhe escorrerem a face e levantou um pulo ao ver algo no espelho acenar. – Trugbild!
-Você tem uma tia ótima! – o espelho comentou girando o novo vestido. – Como se diz...? Tante Melanie?
-O que você fez? – Beatrix perguntou caminhando na direção do espelho.
-Eu falei para trocarmos e você aceitou. Esse lugar é tão colorido, nem sabia que tantas cores existiam...
-Troca de volta... – Beatrix pediu tocando a superficie do espelho.
-Por que?
-Porque eu quero voltar!
-Não, não quer... – Trugbild respondeu virando as costas. – Você tinha tudo isso e só ficava deitada como um defunto! Isso você pode fazer desse lado aí...
-Trugbild!
-Eu estou mentindo? – Trugbild perguntou séria.
-Não, mas...
-Vocês pessoas são tão estranhas... – Trugbild falou se abaixando para acompanhar Beatrix que foi ao chão, a testa no espelho, o fantasma tocou de leve a superficie. – Só dão valor ao que não possuem... Não se preocupe, você vai morrer eventualmente.
-O que?
-Não é o que você quer? Morrer? É só esperar... – Trugbild sorriu – Deite e durma, deixe os anos passarem arrastando suas forças e você vai acabar morrendo mais cedo ou mais tarde.
-Eu não quero morrer!
-Então por que você deitou naquele caixão? Se não fosse o velho você teria sido enterrada viva. E mesmo depois dele a salvar, você continuou apenas deitada como morta.
-Eu era uma criança, eu não sabia! – Beatrix gritou.
-Sabia sim...
Lembrava dos caixões, lembrava da face de seus pais geladas sob a luz trêmula das velas, o perfume das rosas que colocaram ao redor, pessoas em preto passando como sombras nas paredes. Ouvia vozes, mas eram estranhas, falavam de coisas que ela ainda não entendia, mas a repetição ia tornando tudo mais compreensivel, logo entendeu que ela devia estar triste, pois seus pais não iam mais levantar. O fim parecia tão singelo e mediocre, nenhuma glória ou grande luz, nenhum grande abismo da onde saltar, apenas deitar a cabeça num travesseiro cercado de rosas e fechar os olhos para sempre.
-Mutter...Vater...
-Você sabia que eles estavam mortos e não dormindo. Você queria morrer e não dormir...
-Nie! – Beatrix gritou esmurrando o espelho. – NIE!
-BEATRIX!
-NIE! NIE! MUTTER! VATER! NIE!
-Beatrix chega!!!
Só reconheceu a voz de Tante Melanie quando berrou nos seus ouvidos, as mãos ossudas tentando lhe puxar pelos braços e lhe segurar o movimento das mãos que esmurravam o espelho mesmo depois de rachado, só depois de algum tempo sentiu a dor em suas mãos, cacos esmigalhados cortando sua pele. Lágrimas quentes aqueciam seu rosto, sua tia a abraçava para que não se machucasse mais ainda, tudo estava do lado certo e nas cores certas, seu reflexo era apenas uma imagem rachada. Lembrou de seu pai que contava até dez para acalmar-se, da onde viera tanta raiva?
-O que houve, Bea?
-Ein, zwei... Drei... – ela soluçava.
-Beatrix...
-Eu sinto muito, Tante... – a menina murmurou abraçando a tia. – Eu sinto muito...
-Tudo bem, tudo bem... Venha, vamos cuidar das suas mãos.
Dez anos atrás ela deitou no caixão, dormindo embalada no perfume das rosas como seus pais, mas mesmo depois que a tiraram continuou dormente e enterrada. Demorou muito mais que gritos e mudanças para que despertasse, faltava-lhe sangue correndo com lágrimas e cacos de vidro sinceros perfurando sua pele. Faltava olhar dentro de si mesma. Os móveis estavam novamente cobertos por lençóis brancos, tudo em caixas sendo carregadas para o caminhão, Tante Melanie levando as malas para o carro a chamou quando passou pelo corredor. O espelho rachado a encarava.
-Me desculpe... – Murmurou tocando as falhas de onde os cacos caíram, encaixou alguns de volta, mas outros simplesmente sumiram. – Besten dank! – beijou a superficie do espelho com um sorriso antes de partir.

Um comentário:

Ceci disse...

Como eu disse,já começou bem hein?
Em um certo momento me lembrei de Alice no país das Maravilhas...aquele espelho...então,mas parece que temos uma garota com sérios problemas psicológicos devido a morte de seus pais e isso poderia dar abertura para novos acontecimentos "loucos" para nós que estamos (ou parecemos estar) em nosso perfeito estado e "normais porém estranhos" para a pobre garota...

Gosto desse lance de coisas q parecem ser isso,na verdade são aquilo e te pegam desprevenido te assustando ou encantando^^

Pensei q essa tia dela era má,tipo a madrasta dos contos d fadas (taa ja to viajando d novo,quer ver?=X),mas q nada!Parece ser uma boa alma apesar d meio sombria...fria..o.O

vamos para o dois para ver como q ela vai viver com isso q tanto a atormenta...*-*

bjãoo