sexta-feira, 5 de setembro de 2008

14. Calor

A despedida era sempre uma mistura de pesar e alivio, em pleno inverno ela não conseguia usar blusas quando saía com Azure e logo que chegava em casa entrava debaixo de um chuveiro gelado. Não tinha nada a ver com o que fazia ou deixava de fazer, ou talvez tivesse tudo. Dessa vez ele não tinha ido embora, ela estava muito quente e aquilo para as pessoas comuns era febre, ela tentou dizer que estava tudo bem, mas ele insistiu. Saiu do banho com passos lentos, passando com um vestido leve por um Korone de calça comprida e moletom, ele a observou de longe descer as escadas até um namorado preocupado.
-Você ainda está fervendo... – Azure falou encostando a testa na dela.
-Não é nada, eu vou ficar bem logo. – Mika tentou explicar, sentia a respiração dele no seu rosto e isso era evocativo.
-Eu vou pegar um pouco de gelo pra você... – ele comentou indo até a cozinha, já era da casa, entrava e saia, conhecia todos os cômodos daquele lugar enorme, mas ele não conseguiu sequer sair da sala de entrada.
-Ela não precisa de gelo... – era a voz do Korone, ele havia descido as escadas atrás dela, chegou com passos lentos pela retaguarda e num quase abraçou colocou o braço despido do moletom na frente do rosto dela. – Você não reparou ainda, que quando ela fica quente assim é por que ela quer sangue?
Ele não tinha reparado, era verdade, e olhava a cena dela segurando o braço dele como uma criança que tenta compreender um animal devorando o outro. Os olhos dela ainda estavam abertos e reluziam, o âmbar virando escarlate na sua frente, o rosto corando e as pupilas dilatadas. Não, aquilo não era o que ele esperava ver, não parecia nada com a Mika trêmula que ele vira pela primeira vez se alimentando. Aquela expressão era de deleite. Ele não tinha reparado, para ele até aquele momento, aquela temperatura, não tinha nada a ver com sangue ou fome, era algo igualmente primitivo e animalesco, era antecipação... Por um momento achou que estava errado, mas vendo aquilo, suspeitou que pudesse ser os dois.
-O seu sangue deve ter um gosto muito bom, Korone. Eu só vejo ela com essa expressão... – decidiu ficar quieto, porque falaria que só via aquele rosto poucas vezes, quando estava a sós com ela? Não era da conta dele o que eles faziam. Mas se sentia ameaçado, por aquele homem de sorriso despreocupado.
-Azure... – Mika murmurou pensando em falar algo, mas não tinha certeza ainda do que falar. Já estava com ele há certo tempo, tudo parecia tão natural e comum que naqueles momentos extraordinários, não haviam palavras que se encaixassem.
-Não tem nada a ver comigo. – Korone respondeu – É a sua namorada... Ela provavelmente vai ficar brava comigo, mas já que nós dividimos o tempo dela acho que eu posso dividir isso com você...
Do que ele estava falando? Ele estava com uma expressão maldosa e ela sentiu o calor em seu corpo sumir por completo dando lugar ao gelo do medo e da apreensão. Ela temia que soubesse o que ele ia falar, talvez ele já soubesse, como Ângelo sabia... Azure ia saber também? O sangue de seu pai pulsava nas suas veias, queria fazer ele calar a boca, mas tudo que conseguiu foi assistir Korone sentar folgadamente no sofá.
-Você sabe o que é a paixão dos vampiros? Eu nunca soube muito sobre eles ou me interessei, mas depois de morar com uma você acaba descobrindo algumas coisas sozinho.
-O que você acha que eu devo saber sobre a minha namorada que eu já não saiba, Korone? – Azure parecia bravo, ela entendia, Korone achava divertido. E assim os sentimentos giravam como um redemoinho que mais tarde afogaria alguém.
-Me interrompa se eu estiver errado, Mika. Quando um vampiro bebe o sangue de uma pessoa pela primeira vez é doloroso, muito doloroso. É como um mecanismo de defesa que ensina as outras pessoas a se afastarem. – ele lembrava bem da primeira vez que ela o mordeu, não tinha sido nada agradável – No entanto da segunda em diante eu não apenas me acostumei com isso e os ferimentos saravam mais rápido...
-Korone... – Mika murmurou o nome dele de cabeça baixa.
-Além dessas pequenas vantagens e o fato do sangue de um monstro, assim como a energia de um monstro ser mais nutritiva eu me alegro em dizer que é uma sensação de puro êxtase. – ele sorriu, o sorriso canalha que tenta dizer aos outros que eles são idiotas.
-Que bom pra você. – foi tudo que Azure respondeu começando a andar na direção de Mika que continuava olhando o chão.
-Pra nós. – Korone corrigiu.
-Nós? – Azure franziu o cenho.
-Ela até que se controla bem, eu admito. Mas você viu os olhos dela, namoradinho? Eu não sou o único que tenho bons momentos com isso. – Azure não falou nada, cerrou os punhos e ficou calado. Mika não conseguiu interromper, ele não estava errado. Korone parecia maravilhado com a atual situação que causou – Não se preocupe, eu tenho certeza que se um dia ela deixar escapar é o seu nome que ela vai gritar. Azu...
Pode-se dizer que o soco veio do nada, mas naquele caso vinha de tudo. Das provocações de Korone e dos punhos cerrados de Azure que só queria que ele calasse a boca, em resumo era o mesmo que dizer para ele que estava sendo traído desde sempre, por mais que no sentido literal humano não estivesse sendo. Era só um jogo de palavras e significados, Korone não retribuiu o golpe, apenas massageou o rosto onde o outro havia socado.
-Eu também tenho outra teoria. Essa relação de sangue e dor deve ser algo cíclico, pelo que eu tenho observado nos últimos tempos...
-Porque você não cala a boca? – Azure já ia dar outro soco quando Mika o segurou com um abraço. – Mika...
-Como eu estava dizendo, sócio. Ela sente prazer quando bebe sangue, mas tem o outro porém... Essa febre é porque quando ela sente prazer, ela tem vontade de beber sangue. E eu notei tudo isso depois que vocês começaram a sair juntos, não é interessante?
-O que tem de interessante nisso? Você é sádico por acaso? – Azure perguntou rangendo os dentes. Ele acabou se soltando e saindo da casa, Konore deu uma risada sem alegria e se deitou no sofá ainda massageando onde levou um soco.
-Porque você fez isso? – Mika perguntou, o corpo gelado e tremendo.
-Era o que você queria, não era? – ele respondeu. – Cada dia você o afastava mais cedo, se trancando no chuveiro gelado tentando se controlar. Procurando uma desculpa pra manter ele longe antes que você acabasse fazendo o que não queria. Agora você não precisa de uma desculpa, eu já dei motivo suficiente pra ele não se arriscar. Mika...
-O que?
-Você sabe melhor que eu... Se você perder a razão e eu não estiver por perto, você acha que vai poder parar antes que o coração dele congele? Você vai conseguir parar de beber antes de levar embora o último sopro de calor do corpo dele?

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