quinta-feira, 4 de setembro de 2008

4. Até amanhã

-Rinmotoki, não esqueça sua garrafa!
Ângelo gritou arremessando a garrafa de metal para ela, era uma garrafa térmica para que sua refeição permanecesse sempre quente. Era pra evitar sentir fome quando não devia ou atacar alguém, claro que não podia abrir a garrafa cheia de sangue quando bem quisesse e felizmente não costumava sentir fome antes do anoitecer quando geralmente já estava em casa ou voltando pra ela. A vida de todo dia parecia simples, cada um com suas atividades e manias, numa casa tão grande que se estivessem mau humorados nem precisavam se cruzar, tudo ali também era cuidado por um mordomo medonho que eles nunca viam, mas que limpava tudo enquanto eles estudavam.
-Com licença, Mika? – virou distraída antes de poder iniciar sua caminhada de volta pra casa.
-Eu?
-Eu sou, Azure da sala A. Você por acaso faz alguma das atividades extracurriculares?
-Não. Se é só isso eu... – levou um empurrão no braço de Beau.
-Eu vejo você amanhã, Mika! Tchau, tchau, Azure!
-Tchau, Beau.
Por que ela não estava surpresa? Claro que todo mundo conhecia a Beau, geralmente quando um desconhecido lhe chamava era pra pedir para falar algo para a amiga de números avantajados e rosto pecaminoso, felizmente a inquisição tinha passado e não caçavam mais mulheres bonitas. Ficou por um momento tentando entender o motivo do empurrão, fora o garoto completamente comum na sua frente de cabelos castanhos bagunçados e olhos castanhos escuros. Comum? Talvez fosse imaginação dela por ter amigos que eram monstros o dia todo, diferente dela que era só de noite. Azure seria o que muitas chamariam de um cara lindo.
-É que o grupo de teatro estava com um projeto que pediu a ajuda do grupo das aulas de músicas que eu represento... Mas nós precisávamos de mais garotas. – Ele coçou os cabelos e depois juntou as mãos como quem pede, por favor – Eu já falei com todas as outras turmas e até com a Beau, você é minha última esperança.
-Mas eu não sei tocar nada... – Isso e ser a última alternativa em caso de emergências não soava tão divertido assim.
-Eu posso te ensinar os princípios musicais, mas você não precisa tocar nada.
-O que exatamente você quer de mim, então? – a pergunta era natural.
-Sua voz.
-Eu não sei cantar também... – Mika respondeu olhando para o lado, não conseguiu conter um suspiro, não era particularmente talentosa em nada. Tirando o fato de que na verdade era um monstro, era comum em tudo.
-Poderia tentar antes pelo menos? Se não der certo eu serei o primeiro a lhe dizer pra ir embora... – Azure puxou a mão dela a fazendo voltar a olhar pra ele, seu pedido era sincero. – Mas eu queria muito que você tentasse e não acredito que eu vá ter que lhe mandar embora. Por favor...
-As atividades de Música são duas vezes por semana, não são?
-São.
-Se eu me lembro bem, os projetos tendem a ser trimestrais, ou semestrais. De qualquer jeito como você espera me ensinar a cantar em tão pouco tempo? – Ela queria muito convencer ele racionalmente a desistir da idéia.
-Eu pretendo passar as tardes com você. Se você concordar, claro... - ele corou por um momento notando o duplo sentido da frase – Eu pretendo passar todo o tempo possível com você, ensinando e ensaiando até que você consiga acompanhar todo mundo apenas nos dois dias por semana. Ou você tem compromissos à tarde?
-Só E.F. toda quinta, mas de qualquer jeito eu tenho que estar em casa antes do poente.
-Então eu me comprometo a te liberar cedo. Quando podemos começar?
-Mas eu não disse que...
-Seus olhos já me disseram. – ele estava certo, ela já tinha meio que aceitado sem dizer.
-Amanhã... – ela respondeu se virando e começando a andar.
-Muito obrigado, Mika!
Ela simplesmente acenou com as costas da mão, foi andando cabisbaixa e até esqueceu de murmurar até mais tarde quando passou por Ângelo e pelo grupo barulhento que bajulava Korone. Foi andando pra casa com passos curtos que nem notou a noite cair no meio do caminho, tinha andando para sabe-se lá onde e a tarde inteira passou sem ela perceber. Sua garganta estava seca e procurou em vão com as mãos sua garrafa, mas não estava lá, sentou na entrada de uma loja fechada por um momento para tentar se localizar, nunca tinha visto aquele bairro antes. Logo na frente de onde estava uma placa luminosa indicava um motel, os ombros doíam de carregar a mochila tanto tempo sem notar e as solas dos pés começavam a dizer que tinha andado demais.
-Nessas horas eu queria ser o Ângelo... – murmurou abraçando as pernas, seria tão mais simples poder voar de um lado para o outro apesar de todo aquele cuidado para não ser visto e tudo mais.
Alguém saiu do motel, correndo e gemendo como quem chora, mas ela não prestou muita atenção até que outra pessoa saiu logo em seguida. As mãos nos bolsos da calça preta e a mochila jogada num só ombro, conhecia aquele jeito de andar como quem olha todos de cima, levantou a cabeça a tempo de ver Korone do outro lado da rua. Nem notou que ao seu lado já aparecia um grupo inteiro de homens mau encarados, apenas encostou o rosto no joelho e fechou os olhos engolindo em seco, estava com sede e cansada.
-Idiota, vindo num bairro desses sozinha... – era a voz dele resmungando, mas não sentia mais o chão frio sob ela ou a parede atrás, abriu apenas uma brecha dos seus olhos, a tempo de ver o céu noturno atrás do rosto dele, sendo cortado por movimentos rápidos de asas de penas negras. O rosto dele tinha marcas, como tatuagens tribais.
-Korone... O que você fez? – Mika perguntou murmurando, a garganta ardia de sede.
-Nada, cala a boca e dorme...
Nem sentiu quando chegou em casa até ser colocada na cama, o colchão fofo e o travesseiro amigos lhe mandavam continuar descansando, enquanto o estomago lhe pedia pra acordar e ir comer. Segurou ele pelo pulso da camisa, perguntando com os olhos já que a voz não saía. Ele podia parecer qualquer coisa pra qualquer um, mas já era a segunda vez que ela via um lado tenro dele.
-Energia de humanas não me satisfazem quase, eu mandei ela embora antes que acabasse machucando ela já que ainda estava com fome... – Ele explicou virando o rosto e sentando na borda da cama – Quando eu saí você estava do outro lado da rua por qualquer motivo e eu tive que deixar claro que você não estava sozinha... – ela não tinha notado, as marcas na mão dele de quem socou alguém. – Depois disso te trouxe pra casa, você não devia andar em bairros perigosos sozinha...
Quando ele virou pra olhar ela, os olhos fechados o fizeram sentir um misto de raiva e alivio, não sabia se queria alguém achando que ele era um bom garoto. Deixou o quarto em silêncio se trancando no próprio, sentado na escrivaninha mandava sua fome calar a boca. Ouviu a porta se abrindo e quando se virou quase a chamou de idiota de novo, mas a visão dela na camisola depois de tomar um banho para acordar o deixou quieto. Ela lembrou por que ficara tão brava com a fome, antes ela podia ter o sangue que quisesse que um conhecido extraviava de um hospital, mas ele sumira e agora tinha que pensar em outro jeito... Fome, ouviu ele falando em fome antes de adormecer de novo.
-Korone... Você ainda esta com fome não está? – ela perguntou encostada no portal, nem dentro nem fora do quarto esperando a resposta.
-Eu não preciso mais dos seus favores, Mika.
-Vamos... Fazer um acordo? – ela perguntou desviando os olhos, o fato de não ter deixado o portal é que estava se apoiando nele se não ia cair.
-Se você se alimentar de mim, vai ficar satisfeito sem machucar ninguém por que eu não sou tão fraca quanto uma humana... E eu também... – Olhou pra ele por um segundo, os olhos dele estavam sérios, nunca o tinha visto sério antes. – Preciso me alimentar e não quero machucar ninguém...
-Achei que você tinha seu estoque de comida.
-Tinha, mas parece que não vou ter mais... – tomou coragem de dar passos na direção da escrivaninha, parou apoiada nela quase que sentada. Não olhava pra ele, apenas esperava uma resposta, sua boca doía na urgência de cravar os dentes em algo.
-Se é assim... Você vai ter que me deixar comer a hora que eu quiser, meu apetite não é exatamente regular e pontual. – ele falou com um sorriso, o mesmo sorriso de valentão que tinha sempre.
-De acordo...
-Claro que quando você precisar, eu também não vejo problemas. – ele soltou um longo suspiro virando o rosto na outra direção – Só tente ser mais gentil da última vez achei que você fosse arrancar minha cabe...
Ela já tinha apoiado as duas mãos nos braços da cadeira e se inclinado sobre ele, as presas doloridas alcançando o pescoço pensando apenas em matar aquela sede. Ele esperava pela dor, a antecipação que antes esboçou uma careta ao sentir ela cair sobre ele sumiu dando lugar a um calor que se alastrava, sentiu seus pelos arrepiarem e os sentidos girarem, seu coração acelerou... Aquilo, não era dor.
-Eu não avisei? Só dói... Da primeira vez... – ela murmurou lambendo os lábios ainda inclinada, o corte se fechou devagar depois voltou a ficar de pé.
-Bom saber... – Ele respondeu respirando mais fundo do que o normal, puxou o braço dela e mastigou bem próximo a pele aquela coisa invisível, a única coisa que ela sentia era o calor da respiração dele. E ele o gosto amargo e doce da vida ela. – Boa noite...

-Até amanhã...

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